CARTA DE UMA MULHER ELEFANTA

 

Zé,

o melhor desta carta que te respondemos, é poder assiná-la como Mulher Elefanta, para quem você escreveu, um devir-animal-em-nós. Lembramos (com nossas memórias de elefantas) daquelas breves palavras que trocamos, em despedida, quando você disse que chegara depois mas captara a performance que havíamos feito, através dos vestígios. Tão logo fomos surpreendidas com a sua carta. Aquela foi a última performance que desempenhamos como artística, antes de deixar a capital de Goiás. Era preciso abandonar o peso da memória que carregamos no corpo, deixar apenas os rastros da nossa passagem. Tudo mais seriam acessórios, bagagens desnecessárias. Gostaríamos de poder voar, fluir ou queimar de uma vez por todas, mas havia um excesso de terra, onde os territórios definem as paisagens, e todos cobram os seus tributos de sangue. Poderíamos dizer que, por fim, voltaremos ao pó, e então um silêncio absoluto. Mas retomemos à performance, propriamente dita, embora ela queira nos levar além. Imaginamos que tudo teria sido mais simples, sintetizando ao máximo nosso espírito barroco. Bastaria cavar um pouco de terra em um estacionamento do bairro e transportá-la numa caminhada lenta, deixando, a cada passo, os rastros de sua matéria densa, até instalar o suporte, finalmente vazio, permeável, uma mala de couro, que já trazia consigo as marcas do tempo. Sonhamos que após essa travessia entre a memória e o esquecimento, entre o insustentável do peso e da leveza do ser, a promessa de chuva lavaria da calçada a nossa alma. Mas as contingências sempre presentes do tempo e do espaço colocavam em risco a possibilidade dessa performance na área externa daquele evento. Atendemos à sugestão de que fosse dentro o que fora concebido fora, de que fosse privado o que deveria ser público, a contra-mola da resistência. Assumimos o terreiro, pois tudo move em nossa terra movediça, no volver paciente da sabedoria, para não se precipitar em terremotos. Executamos o programado, sob os olhos das testemunhas, nos infiltramos no meio delas, no pátio, até alcançar o portal do ambiente interno, ultrapassando um limite essencial. Pisamos no piso branco com a terra vermelha, num lapso, num ímpeto, num fluxo descontínuo e desmesurado. Até que a chuva prometida espalhou a terra feito lama, sob tantos pés, por todos os recintos da casa grande. E agora, José? É verdade que ficamos preocupadas com a dimensão que tomara o nosso rastro, até nos dispusemos a ficar pós-ocupadas, mas fomos dispensadas dessas ocupações pela produção do festival, até saber do mutirão para limpeza do salão, pelos escravos da cultura. Por fim, fomos desocupadas daquele lugar. Somente agora, que nos desterritorializamos, no sentido das águas, pudemos elaborar melhor algumas dúvidas acerca da nossa postura est-ética, da natureza dos espaços, da política dos relacionamentos e do mercado de arte. A performance artística não haveria de estar à serviço do consumo e do entretenimento, digamos que ela tenha cumprido o seu papel, às custas da nossa condição social. Tudo, com ela, caiu por terra, as máscaras, os fetiches, o indiscreto charme da burguesia. E se dentro das estruturas mantêm-se a ordem e as hierarquias, fora delas tudo conflui nas mais sinceras das amizades. Aprendemos que cada performer é eternamente responsável pelos problemas que cria. Entendemos, talvez mal, que não deveríamos nos desculpar nem impedir o perdão, apenas deixar aquele território, para o nosso bem e para o bem de todas. Tudo poderia ter sido mais cuidadoso, mas foi como foi, dançamos com Dioniso e Apolo se levantou impecável, anunciando nossa tragédia, jamais resolvida. Quantas histórias de amor e de guerra romperam territórios sagrados e profanos em nossas culturas? Quantas violências reproduzimos todos os dias em nossos gestos e palavras, olhares e não-olhares, gritos e sussurros? Até mesmo a poesia pode soar mal fora do momento ou do lugar, sendo exatamente essa a sua condição. Nos multipliquemos, pois, numa abdicação dos egos, pois já nos fragmentamos demais e habitamos um mesmo Universo. E quando aliviada essa tensão entre o eu e o outro, então admitida no corpo, no gênero, na linguagem, nas relações humanas e não-humanas, no tempo e no espaço, já não será mais preciso escrever cartas nem transformar hábitos, como o propôs Antonin Artaud, um enlouquecido pela sociedade, na performance inaugural do Teatro da Crueldade. Desejamos que, tal como nós, à sua maneira, você também possa fluir pelas margens, pelas superfícies ou pelas profundezas dos territórios que desejar, com suas performances de corpo e de mente, entre a dança e a psicologia, com todas as ca-ca-co-co-fo-nias e ra-ra-re-re-fa-ções dessa linguagem. Deixamos tudo o que nos resta ao nos darmos conta desses conflitos territoriais desde as mais primárias das civilizações: a gratidão por aqueles que espalham as terras conosco, pelos cruzamentos entre os que buscam novos cruzeiros, pelas partes que nos partem, em eternas repartidas, navegando outros mares possíveis.

Acena, 

Mulher Elefanta, 2017.

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