CARTA AO SENHOR PRESIDENTE E COMUNIDADE DO INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO, DA UNIVERSIDADE DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
Caro
professor Agostinho (Salvador)
Esta carta faz parte do relatório de atividades da missão internacional de estudos que realizei no Instituto Superior de Educação e Comunicação, da Universidade de São Tomé e Príncipe, entre os dias 20 a 31 de outubro de 2025. O espaço para uma carta compunha o modelo de relatório a ser encaminhado para a Assessoria de Relações Internacionais, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, que financiou a referida missão, através do edital 215/2025.
Nesta carta, que me cabe escrever em primeira pessoa, deixarei registradas algumas impressões acerca de experiências vivenciadas durante minha imersão em São Tomé e Príncipe, mais precisamente no ISEC/USTP e suas extensões. Devo dizer que venho experimentando cartas como gênero literário e método de pesquisa acadêmica há alguns anos, e o desafio que elas sempre me trazem é a ponderação, um tanto quanto intuitiva mas também racional, dos limites entre a subjetividade e a objetividade dos saberes, a coloquialidade e a formalidade dos discursos, a privacidade e a publicidade dos conteúdos, com vistas à sua legitimidade e consideração ética.
Começo te agradecendo pela sua atenção e cuidados, desde quando desembarquei no aeroporto de São Tomé, na noite de 18 de outubro, até quando me levou de volta até ele, quinze dias depois. É sabido que cheguei sem sinal de celular, contando com a sorte de ter no aeroporto um carro da embaixada brasileira à espera de professores da Universidade de Brasília, que foi gentilmente cedido para meu translado até o Hotel Central, onde fiquei hospedada durante minha estadia no país.
Não poderia deixar de cartografar uma das maiores experiências desse primeiro trânsito: voar sobre o Saara! Fiquei olhando atentamente para sua longa extensão em tons marrons abaixo das nuvens, num incrédulo silêncio ao saber que voávamos sobre ele mesmo, o deserto, plena de emoção ao atravessar o seu vazio. Assim são os instantes da poesia, voláteis como o ar!
Mas voltemos à missão acadêmica… Era ainda domingo, quando desci para o “pequeno almoço” do hotel, nas salas de refeições repletas com poesias são-tomenses, de poetas como Alda Espírito Santo, Manuela Margarido, Eugênio Tavares e outras conterrâneas e conterrâneos da ilha. Em seguida, caminhei pelo centro histórico da cidade, entre feiras livres e praças, até chegar na orla do mar, onde uma alvoroço anunciava pescaria de lulas nas marés da lua nova. Foi onde conheci a jovem escritora Sodylza Afonso, que te apresentei naquela mesma tarde. Ela foi uma boa companhia nas horas vagas, me acompanhando até a Associação de Artesanatos Pica-Pau e o Centro de Artes, Cultura, Ambiente e Utopias, onde visitamos uma exposição de artes visuais, em sua maioria de artistas contemporâneos, mas também com registros de algumas manifestações populares do país, como o tchiloli, e outras similares aos ternos de reis e congos que temos no Brasil. Sol veio a participar do evento pelo Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro no Brasil, que organizamos no Instituto de Educação Euclides Dantas, aqui em Vitória da Conquista, enviando gentilmente sua poesia Mulher: árvore da vida, para uma exposição temática seguida de recital poético e musical.
No ISEC/USTP, iniciamos oficialmente nossos trabalhos na manhã do dia 20 de outubro, segunda-feira, quando fui recebida pelo senhor, vossa equipe administrativa e demais professoras e professores do Instituto. Ao nos apresentarmos, explanei sobre o plano de trabalho da missão internacional de estudos. Fiquei surpresa ao saber que várias professoras e professores do ISEC se pós-graduaram em universidades brasileiras, assim pudemos trocar experiências que nos trouxeram alguma familiaridade, além da língua portuguesa. Em seguida, passamos pelas salas de aulas, onde fui apresentada a estudantes da graduação e da pós-graduação, dos cursos de Comunicação, Gestão Cultural e Educação de Infância, observando uma maior predominância de mulheres nessas áreas.
A missão correu de forma orgânica, fui adaptando meu plano de trabalho à dinâmica própria da mobilidade, conforme os encontros e demandas do ISEC. Assim, ao longo dos dias, tardes e noites, ministrei aulas nos cursos de graduação em Gestão Cultural, a convite do professor Joy Seabra, e de Comunicação e Educação de Infância, a convite do professor Ciclei Dias. Os debates dessas aulas estiveram fundamentados nas epistemologias feministas e decoloniais sugeridas na bibliografia do plano de trabalho, e acatadas por ambos os professores, assim como também pelas(os) estudantes presentes, que colocaram questões pertinentes ao longo dos nossos diálogos, com foco na realidade do país. Nas turmas de Gestão Cultural, busquei compartilhar, ainda, a forma como venho aplicando tais epistemologias e metodologias em meus projetos de pesquisa, assim como no projeto de extensão Performances Culturais, que executo na Coordenação de Cultura/Pró-reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da UESB, produzindo diversas atividades voltadas para arte, cultura, gênero, educação e jornalismo, em comunidades urbanas e rurais de Vitória da Conquista, incluindo escolas estaduais da cidade e região, desde o ano de 2021.
Ainda no curso de Educação de Infância do IESC, ministrei aula de Expressão Corporal, a convite da professora Maria Georgina , o que foi bastante satisfatório, um vez que, como mestra em Artes Cênicas, considero esses saberes práticos instrumentos diretos de decolonização epistêmica, em nossas universidades que foram igualmente dominadas pelo racionalismo europeu. Por isso, também, meu contentamento ao fazer oficinas de danças tradicionais são-tomenses e brasileiras, com Gizela Souza, estudante do curso de graduação em Língua Portuguesa do ISEC, que o senhor havia me indicado, dada sua pró-atividade na Semana Acadêmica do Instituto. Gizela entrou em contato comigo para encontrá-la em seu trabalho, na Escola Básica 12 de Julho, localizada nas mediações da comunidade do Quilombo. Ao finalizar suas funções, começamos a ensaiar três ritmos locais, no pátio da escola, ússua, socopé e rebita, cercadas pelas crianças que imitavam nossos passos. Ao soar a sirene, as crianças saíram correndo da escola, Gizela limpou algumas salas, e fomos jantar perto da sua casa, na comunidade Água Arroz. Eram seis horas da tarde quando, passando em frente a um batalhão do exército, soldados hasteavam a bandeira do país. Todas as pessoas, pedestres e motoristas, se colocaram em pé diante da cerimônia, e nós também. Acredito que estávamos em um lugar mais periférico da cidade, com casas de madeira em chãos de terra, onde águas empoçadas da chuva eram reutilizadas para lavagem de automóveis. Gizela caminhava com seu filhote aninhado nas costas, cantando músicas em crioulo forro, cujos significados das palavras eu pouco compreendia, deixando-me guiar pelo tom firme e agudo da sua voz, nas ruas escuras. Jantamos um prato típico do país, búzio do mato, com arroz e cerveja artesanal. Estava sem luz elétrica no bairro, então liguei a lanterna do meu celular, que caiu no chão e quebrou a tela, o que eu resolveria no dia seguinte, com ajuda de um funcionário do hotel, que o levou para assistência técnica.
Durante e após a imersão em São Tomé e Príncipe, outras estudantes das graduações e pós-graduações do IESC me procuraram, solicitando contribuições em seus trabalhos acadêmicos. Uma delas foi Bráulia Costa, pesquisadora do mestrado em Educação, Cooperação e Inovação, que me enviou sua dissertação para que eu lesse e comentasse, especialmente no tocante às questões metodológicas do trabalho. Após fazer a leitura, nos encontramos no Instituto Camões, para uma conversa, na qual lhe indiquei a obra do educador brasileiro Paulo Freire, como possível contribuição à questão da autonomia na supervisão pedagógica, que ela investigava em sua pesquisa.
Poder transitar pela interdisciplinaridade nos cursos do ISEC, com questões epistemológicas e metodológicas pertinentes a todas as áreas, foi certamente uma outra grande satisfação profissional, já que minha formação interdisciplinar tem sido um impedimento para que eu possa me candidatar à maior parte dos concursos e seleções para docentes universitários no Brasil.
Estando em São Tomé e Príncipe, como parte das vivências culturais previstas no plano de trabalho, visitei, com o professor Ciclei e Denise, estudante do curso de Educação de Infância, o Museu Nacional, cuja sede é um antigo forte com vistas para o mar, cuja arquitetura e localização me remeteram ao Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador. Quase todo o acervo do museu fazia referência ao processo de colonização europeia em São Tomé e Príncipe, desde a ocupação da ilha, o processo de escravização dos nativos e as lutas pela emancipação do país, que veio a ser oficializada em 12 de julho de 1975.
Também fizemos uma visita guiada à Biblioteca Nacional, percorrendo todos os seus recintos, a começar pela bem frequentada sala infantil, até o auditório e demais acervos, dentre eles um exclusivo de obras nacionais. Seria capaz de passar muitas tardes como aquela neste último acervo, especialmente pela enorme curiosidade que tive sobre a vida e obra, tanto literária quanto ensaística, de Alda Espírito Santo, mulher são-tomense que, pelo que soube, teve uma atuação fundamental no processo de emancipação política do país, assinando seu hino Independência Total. Sendo recebida pela diretora do Museu, Marlene Quaresma, lamentamos a brevidade da minha estadia no país, e conversamos sobre a possibilidade de minha participação no centenário de Alda, ano que vem, seja presencial ou virtualmente. Acredito que seria uma oportunidade ideal para fazermos a oficina de Literatura Epistolar que acabou por não acontecer durante o intercâmbio, embora esta carta possa ser em parte considerada uma realização desse propósito.
O ritmo da missão foi intenso, dado o curto período de tempo o qual proponho que seja revisto nos próximos editais da Arint/UESB, desde o processo seletivo, a logística da viagem e a permanência no país da imersão, especialmente no caso de longas distâncias continentais, como Brasil e São Tomé e Príncipe. Gostaria de ter caminhado mais devagar às sombras das amendoeiras e pés de fruta-pão a caminho do trabalho, entre canteiros e jardins, com plantas e ervas comumente encontradas nos interiores do meu país. As chuvas previstas para outubro não cessaram o forte calor, donde um clima equatorial predominantemente quente e úmido, um tanto quanto parecido com a região norte brasileira, entre outros aspectos semelhantes, quer sejam naturais ou culturais, que me causavam mais sensações de afinidades do que de estranhamentos.
Caro professor, agradeço, ainda, pelo maravilhoso jantar que tivemos ao final dos trabalhos, confraternizando com demais colegas. Assim como naquela visita ao pólo do ISEC, no distrito de Lembá, em que também jantamos a caminho da cidade, as histórias, peixes e vinhos partilhados nesses percursos se tornaram agradáveis lembranças. Além da continuidade das parcerias profissionais que vislumbramos, talvez seja esta minha maior motivação para querer voltar: ter sido tão bem recebida por vocês, em minha primeira missão internacional, sendo que aqui mesmo, já há alguns anos, tenho sido uma missionária retirante.
Abraços em todas e todos com quem estive por aí.
Morgana
Brasil, 20 de novembro de 2025.

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