CARTA PARA O MENINO DE LUZ*
Ei,
leãozinho, vamos dançar? Por aqui as folhas não demoram a renovar
as tardes de outono. Que assim seja, pois, para que possa girar,
sempre, a roda dessa morte-vida, a propósito da sua partida, que
marcara uma série de rompimentos inevitáveis e necessárias às
relações, em si mesmas, viciadas, o que outrora nos remetera aos
ensinamentos de Buda. Para além dos nossos desejos, que se
materializavam a cada passo e a cada compasso, sob a aliança entre
uma sensibilidade e uma inteligência raramente comungadas, as
experiências acumuladas em nossa trajetória emancipada não
haveriam de anular as possibilidades de sermos surpreendidas, a
qualquer momento. Talvez porque você não projetasse as suas sombras
no mundo, jamais poderíamos mensurar o peso que se escondia por
detrás da sublimação poética mais pura, da qual trataram
Bachelard (2002) e Calvino (1990), por meios diferentes, a despeito
da densidade em nossas confissões trocadas nas intermitências de
rotinas atribuladas, pelas noites de uma estrada inquieta, a mesma
que te levaria a uma viagem sem retorno. Nunca imaginamos que
fôssemos te perder em um salto fatal, que você pudesse cair direto
dos seus sonhos, assim. Você não tem juízo, menino? Não sabia que
eles são feitos de céu e carmim? Gostaríamos de ter coragem para
voarmos ao seu lado, mas ainda me restam as agruras da vida, os
martírios em flor. Estamos a semear a terra que nos revolve às
sensações do primeiro instante, desde a incredulidade do seu nome,
ao drama que nos fez correr pela cidade vazia, atravessar templos
sagrados, enfrentar as bestas e as feras do inferno de Dante. Ainda
temos o calor do nosso último abraço, que irradiamos às luzes de
uma clínica, onde compusemos o triângulo da paz, com agulhas
espetadas. Ainda temos a espada de São Jorge, que você replantara,
para melhor guerrearmos, as pétalas coloridas das flores que você
regava, sob os nossos ares de escravas brancas, ali, onde a sua
leveza, por tão breve, fizera levitar, também, o fardo da nossa
jornada. Tudo acontecera naquele dia, em que ansiávamos por te
contar a nossa nova descoberta, sobre a possibilidade do jogo como
estratégia política de profanação, o que você fazia tão bem,
pelas algaravias
lúdico-pedagógicas, como artista e pensador. Nós, que andávamos a
te querer em meio às máscaras duvidosas do carnaval, por
seu-cuidado-de-si-que-também-nos-cuidava, nós, como Genésio, filho
do vento, que nem mais a brisa acolhe,
nos tornáramos irmãs da sua delicadeza. Bem aventurada a intuição
da urgência que tivemos em te entregar as Epístolas
Profanas,
que lhe foram roubadas em um lapso de conveniência reparada, o que
nos proporcionara mais um ritual de encontro e despedida, a encomenda
insólita que, dentre outras coisas, nós te confiamos, essa palavra
que se aplica muito pouco, e o crepúsculo anônimo no qual, em vão,
te procurávamos, para curar o nosso abandono. Seguiremos a garimpar
a mito-poética-performativa, nas terras áridas dos sertões
infinitos, em memória dos seus sonhos, e a defender a epistemologia
implícita em nosso fazer, sobre o solo empobrecido de uma tradição
científica. Devemos esclarecer, ainda, que a artista não é, mesmo,
uma ser especial, senão daquele modo, que Agambem (2007) explicara
muito bem, pela comum humanidade da sua revelação, não, apenas, em
função da obra que comunica, como, também, das condições
elementares que precisa para bem fazê-lo, e que não lhe foram
dadas, a exclusão social que nos é acusada, e que nos cabe
reivindicar, pelo convencimento, todavia, frente aos discursos duros
que não cansam de repetir, sem diferenciar, toda espécie de
administrador, político e economista. Em contrapartida, não vemos
outra operária mais empenhada em seu ofício. Nós, que poderíamos
ter respondido em palavras quando você nos escrevera TE AMO,
julgávamos que pudéssemos fazê-lo com desenhos e gestos, ou,
ainda, que fosse possível amar em silêncio.
É o que nos resta, pois, os silêncios,
aquele, por nós dois, compartilhado, pela vontade radical de sermos
absolvidos de qualquer expectativa e toda culpa, pela coragem de nos
calarmos, expressivamente, para nos fazermos escutar, de outro modo.
Talvez essa cumplicidade silente só tenha sido possível em virtude
da alteridade que você trazia em seu coração de Câncer, do
espírito coletivo do teatro, onde era a sua morada, e da
generosidade do seu didatismo, que nos fazia, também, professoras,
justo aquilo que nós te apontamos faltar ao universo, tantas vezes,
autorreferenciado da linguagem performativa, um perigo advertido,
apenas, por aqueles que desejam amar. Por fim, restam-me, ainda, as
notas de uma escaleta a nos consolar, a sua presença eternizada pela
aspiração última da arte, que você sabia, e os afetos que se
atualizam na saudade, ela que nunca nos deixará sozinhas, pois você
estará para sempre aqui, para sempre nosso, leãozinho (…)
Morgana Poiesis
Comentários
Postar um comentário