ESQUIZOCARTA
Eu disse que poderia te escrever cartas, não foi? Pois bem. Por muito tempo me dediquei a esse gênero de escrita, sem possuir, contudo, uma pretensão literária, apenas como expressão dos afetos mais profundos. O nomadismo me levou a queimar esses papéis, até que, recentemente, passei a reconhecer, nessa literatura epistolar, um lugar para construção de pensamentos, de modo que tenho, entre outros projetos, uma releitura dessas cartas sob a dimensão estética. Encontrei alguns fragmentos em uma busca virtual, sendo, por ora, meus únicos vestígios. Desconfio que o nome atribuído aos Fragmentos Solares1 remete, ainda, a uma espécie de ego projetado em uma clave de Sol, Sol-ista Sol-itária, que supõe haver em outrem alguma correspondência. É verdade que tenho bons correspondentes, com os quais produzo uma cumplicidade literária. No entanto, e a despeito do Sol que tem ao seu redor tantos planetas girando, não tenho dúvidas de que as cartas são motivadas por um outrem que me provoca. Além disso, comecei a desenvolver um tipo de discernimento, escrevendo nos diários tudo o que ninguém suporta nem merece ouvir, do mesmo modo motivada pelos outrens que me afetam, e que ultrapassam o que outrora poderia ser considerado a essência do meu ser. Mas não voltarei ao cogito e nem à metafísica, está bem? Devo dizer, ainda, que o reconhecimento dessa produção foi estimulado por Anaïs Nin, que me seduz a cada dia, não apenas pelo método autoanalítico por ela desenvolvido, que ainda hoje me parece se constituir como uma contundente crítica à psicologia moderna, ou pela mulher libertária que traduz o meu percurso, mas, sobretudo, por uma literatura que custou a própria vida, o que, frequentemente, não agrada à crítica, diferente da ficção e de outros romances. Nin é minha maior inspiração para isso que denomino escritura performativa. Não sei se posso chamar carta estas linhas que te escrevo, pois que me parecem mais um prólogo para o que gostaria que se tornasse um diálogo frutífero, e que para tal precisaria do seu atento retorno. Não posso me bastar com essa metalinguagem! Quando disse que poderia te escrever cartas, parti de um desejo que você me provocava, e que reluto em confinar a um conceito restrito, tendo em vista que nosso encontro nasceu em uma esfera mais ampla, digamos, mais filosófica e política. Não quero reduzi-lo à sedução que ensaiamos, o que parece ser em mim uma força indomável. Que as cartas me libertem dessa pobre condição! Percebe a criação que atravessa o fluxo da escritura? Desse modo, deixo esvair o objetivo desta carta, conduzida pelo prazer de uma excitação criativa. Quando disse sobre a evanescência de outrem é justamente em virtude dessas criações que me assaltam e que, embora atravessadas pelo encontro com esse outrem, parecem me levar a uma alienação da sua perspectiva, no caso em questão, pelo enamoramento do discurso, que me leva a desconfiar do amor em nome do qual Roland Barthes produziu uma síntese tão bela. Devo dizer, ainda, que escrevo para poucos amigos, mas que os inimigos, igualmente seletos, são também responsáveis pelas melhores palavras. Quanto a você, meu novo destinatário, diante da prerrogativa de um encontro virtual, por ora não se encaixa em uma categoria nem em outra, apresentando-se, portanto, como um desafio imaginário, que aceito com entusiasmo, em nome disso que coloco como uma epistemologia literária, o simulacro que conduz a arte do nosso encontro. Para melhor dar vazão a esse projeto, cujo esboço se efetiva em um processo cada vez mais simultâneo entre o pensamento, a prática e a expressão pública, não apenas como um tipo de recusa à representação social em que vivemos, mas também como um equívoco ao qual não posso recorrer, de manter privada essa produção que anseia por uma compreensão mais expandida, peço que não se coloque na condição de leitor único desta carta, embora ela tenha sido prometida e feita para ti. Manterei em sigilo sua cara identidade.
Morgana Poiesis
Bahia,2013.
1Nome atribuído aos nossos primeiros ensaios para uma literatura epistolar,na qual reuni cartas não publicadas, escritas entre 2004-2012, na Bahia.
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