CARTA PARA UM ARTISTA QUE CONHECI*



Como escrever uma despedida sem fim? Haveria palavras assim? Os silêncios seria a nosso último selo? Eu me calei, você se calou, nós que nos calamos por tanto tempo, fora o remédio para a nossa dor. Até que nos encontramos na imensidão do mar, ele nos libertara de uma maldição do amor. Não há mais tempo para o ressentimento dos tristes, para os que buscam a verdade dos fatos, para a culpa dos cristãos. Você que sonhava não mais ser, agora está livre do peso da matéria, do drama de existir, da insuportável lucidez dos enlouquecidos pela sociedade, nenhuma memória jamais te abusará, as vozes que te perseguiam calaram-se para sempre, deixaram-te em paz, embaladas às suítes de Bach. O que nos resta é o eco do que elas te diziam, nas palavras escritas, nas imagens projetadas, nos gestos interpretados, nos traços de rostos transfigurados, na vibração das mais doces melodias, os artifícios do seu gênio imponderável. Voamos Em busca do vento2 que te levou, dos sonhos que você viveu, sim, viveu, pois a representação era apenas um capricho da linguagem. Gostaríamos que você tivesse conhecido Venuska, talvez ela pudesse te acompanhar onde fomos incapazes de ir, aposto que ela teria agradado a escritores como Charles Bukowisk e Henry Miller, de cujas experiências você, também, se aproximava, as múltiplas facetas de um ator. Mas para que Venuska se você já tinha Mirna, Carla e Apoema? Imaginamos que elas possam se corresponder entre si, como o prodigioso inconsciente do Papel de Carta3, a despeito da crítica que fizemos a seu pedido, de que não havia ali um devir mulher que as sustentasse, pois você era, ainda, um autor e um homem em demasiado. Ora, se não eram os limites da nossa própria essência que reivindicavam. Na primeira noite em que estivemos juntos, tivemos pesadelos, havia rastros de sangue pelo chão. O tarô reforçava o significado dos símbolos, e não há mistério nisso, pois a morte já havia nos atravessado outra vez. O que nos acontece é motivo de celebração, tal como o fizemos em seu rito de passagem, apesar da cultura que nos aprisiona, a morte é uma festa, você não sabia? Pergunta pra Lili (OLIVEIRA, 2011), ela pode te contar os segredos da Bahia. Nós que mentimos em nome da arte, ela que nos permite escrever, nós que desejamos amar, teríamos sido mais do que dois indivíduos? Tivemos medo de atravessar a ponte, ela que nos separava e também nos unia, você nos injuriava enquanto a gente fugia, a gente choramingava enquanto você esculpia, teria sido essa a nossa fiel parceria? As cortinas se fecharam às Gotas de amor no ócio4, para eternizar a poesia. Certo dia te alertamos dos riscos de uma subjetividade radical, quando você nos descrevera o desaparecimento das outras à frente de suas criações, agora sabemos que elas não desapareciam completamente, pois você os trazia de volta ao mundo, através das suas impressões interiores, onde eu também nos vemos refletidas. Haveríamos de nos conformar com o Descontínuo5, com essa ausência presentificada em cada obra, a rica apreensão da sua mais pura humanidade.

Morgana Poiesi, 2015


* Carta sussurrada em performance artística na exposição Paulo Tiago: a verdade na alma, na 11ª Mostra Cinema Conquista, em Vitória a Conquista-BA, 2015.

2 Espetáculo de teatro infanto-juvenil em que atuamos junto à troupe Estrasbuns, com roteiro do artista multilinguagens Paulo Tiago dos Santos (em memória), homenageado nesta carta, performance e exposição.

3 Um roteiro inédito para cinema de Paulo Tiago.

4 Filme em que atuamos junto ao também diretor Paulo Tiago, Salvador-BA, 2014, disponível em https://vimeo.com/91451605, acessado em 28 de janeiro de 2018.

5 Vídeo em que atuamos junto ao diretor Paulo Tiago, Vitória da Conquista-BA, 2006, disponível em https://vimeo.com/22633408, acessado em 28 de janeiro de 2018.

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