CARTA PARA UMA OUTRA MULHER


É com grande satisfação que atendo ao seu chamado, a despeito daquela carta que você me escreveu, das intermitências de um Vale. Compreendo sua postura e escuto as outras vozes que te habitam. Não tenha dúvida de que meu silêncio foi um tipo de resposta às suas palavras e, por ironia, uma troca de lugares. Não almejaria ser o Sol do seu sistema criativo, nem esperei que se voltasse para mim com os olhares de uma deusa apaixonada pela própria criatura. Sabemos que precisamos uma da outra para compartilharmos as nossas questões, desde as mais específicas até as mais diversas. Os tormentos que te trazem me levam a romper com os limites do silêncio. O que tenho para te dizer é aquilo que, há muito, você já percebeu em suas experiências, cuja consciência se ampliara no encontro com as reflexões de outras escritoras que me antecederam. Pois bem. Saiba que você não precisa corresponder às expectativas daqueles que perverteram sua liberdade. Que não deve permitir, em nome dela, nenhum tipo de abuso, e que haverá de fazer isso, sem ter que formular a censura que não te cabe. Que não precisa reproduzir a espécie humana, nem sacrificar seu corpo. Que não precisa temer a solidão, nem deve calar seus pensamentos. Que não precisa ofuscar nem evidenciar a beleza e a sensualidade que te são naturais. Que não precisa curvar os seus ombros nem se vestir de maneira indesejável. Que não precisa sustentar uma relação amorosa estável, em que não esteja feliz, como um escudo contra os preconceitos da sociedade, seja o assédio dos homens, a hostilidade das mulheres ou a moral excludente dos casais. Que não precisa fazer o que não quer para atender aos caprichos de uma imaginação pornográfica, cultural e comercialmente produzida, a servidão a qual me parecem se submeter tantas mulheres casadas, e que nutre, ao mesmo tempo, a estratégia econômica das prostitutas. Gostaria que o gênero fosse uma questão ultrapassada, como nos impõe a intolerância daqueles que se esqueceram de efetuar uma crítica necessária à repercussão do pós-estruturalismo francês em um país colonial, a despeito da nossa alegria antropofágica. Gostaria que as mulheres e os homens fossem capazes de se amar livremente, a partir dessa diferença, bem como aqueles que preferem os seus iguais. Se te escrevo com um suposto distanciamento, é para que não tomem, mais uma vez, as questões sociais que nos atravessam como privadas demais para serem expostas e, em nome disso, negligenciadas, embora estejam claros os riscos da nossa postura política. Talvez esse distanciamento seja necessário para evidenciar o fato de que você não está isenta das opressões que denuncia, através de mim. Às vezes, precisamos nos exilar desse jogo de forças, e das suas condições de espaço e de tempo, para elaborar tal violência, como sempre, velada. Lembre-se que o primeiro sinal dela fora a sua vontade de chorar.

Sempre ao seu lado.

Morgana Poiesis, 2015

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