A-FETO













































No primeiro semestre do meu ingresso no mestrado acadêmico em Artes Cênicas, pelo PPGAC-UFBA, em 2011, me matriculei em Laboratório de Performance, disciplina obrigatória para pesquisas com encenação. Embora desenvolvesse uma pesquisa sem encenação, na linha de pesquisa Corpo e(m) Performance, desejava um espaço dentro da universidade para estudos práticos em grupo, sobretudo com colegas pesquisadores da performance enquanto linguagem artística contemporânea, durante o desenvolvimento teórico da minha pesquisa. Pesquisadores confluem para a necessidade de formas específicas aos estudos desta linguagem, quer em termos de metodologia de pesquisa ou de literatura a respeito, devido a algumas de suas características peculiares, como a indissociabilidade teórico-prática e a impossibilidade de registro1.
Além de encontros dentro dos espaços da UFBA, desenvolvemos atividades no Jardim Zoobotânico da cidade, com o Movimento Autêntico2, onde experimentamos o paradoxo da relação dentro-fora, a partir do impulso interno (princípio desta técnica) com o meio ambiente. Exploramos esta relação interno-externo na mostra de performance CorpoAbertoCorpoFechado3, na Galeria Cañizares, sOb curadoria de José Mário Peixoto, quando atuei junto ao Grupo de Dança-Teatro da UFBA - A-FETO, coordenado por Ciane Fernandes. O nome do evento faz referência ao paradoxo enfrentado por artistas ou coletivos deslocados dos espaços abertos em que atuam, como a natureza ou a cidade, para o espaço mais restrito da galeria.
Em 17 e 18 de setembro, tivemos aulas de campo na cidade de Lençóis-BA, onde seguimos desenvolvendo performances no meio ambiente. No primeiro dia fomos para o Serrano, numa pequena trilha ao lado da rodoviária de Lençóis. Tomamos banho nas piscinas naturais, e abraçamos as pedras, experimentando como elas podiam compor com o nosso corpo. Em seguida fomos para o Salão de Areia, uma espécie de gruta de pedras com chão de areia, e iniciamos uma performance a partir de impulsos internos com o espaço da gruta. Encerramos com um abraço coletivo e saudações orientais, e quando retornamos já era noite. No outro dia, fomos à cachoeira, e tivemos uma experiência coletiva com argila natural, iniciada por Giorgia (Conceição), quando desenvolvemos uma dança espontânea em que cada um encontrava seu próprio lugar e movimento naquele ambiente comum. Fiz música com Felipe (André) batendo na água com as palmas das mãos . Após e pintura e a dança, adormeci numa das pedras e acordei com as risadas dos colegas que tomavam banho, retirando a argila do corpo, e encerrando em ritual coletivo a nossa performance.

Nos dias 19, 20 e 21 de novembro, estivemos novamente em aula de campo, na cidade de Lençóis. No primeiro dia, saímos por volta das 14h em direção à floresta onde faríamos os nossos trabalhos. Optamos pela terra. Havia uma clareira, um espaço que fora preparado para que pudéssemos performar, cercados pela mata. Nos despimos de nossas vestimentas usuais, alguns vestiram figurinos, outros se pintaram com tintas especiais. Escolhi o azul. A orientação era que performássemos aquilo que queríamos resgatar em nós. Desenhei asas em meus ombros, braços e costas, fiz traços em movimentos pelo corpo, para encontrar a fluidez que procuro, a água em mim. Então abrimos uma roda e iniciamos a nossa performance. Fechei os olhos para o Movimento Autêntico. Queria abrir o meu corpo, braços, e boca. Também abri o peito, queria que o mundo me tomasse outra vez. Todos os meus movimentos pediam abertura, os ombros e cabeça pendiam para trás, numa postura contrária àquela que me é habitual. Enquanto buscava integração com o mundo, uma mão tocou a minha mão, um corpo se aproximava do meu corpo, e o acolhi. Em um determinado momento, minhas asas nasceram. Meus pés na terra e minhas asas no ar. Saltava para que a terra não fosse o meu limite. Batia com os pés e as mãos no chão. A boca aberta e a língua para fora, emitindo sons da garganta retida, queria sons graves para o agudo que forjara em minha voz. Sentada, os braços de um lado para outro batiam em minhas costas. A luz atravessando as pálpebras. Encerramos em círculo, fomos para o rio, onde novas performances emergiram junto com a chuva.

No segundo dia, saímos para o rio. Passamos por uma cachoeira onde gravei o som da água caindo em cascatas intensas. Líria (Morays) e Ciane dançaram dentro de uma pedra, ao fundo da cachoeira, se misturavam com ela. Em seguida, seguimos para a Primavera. Imersos no rio, encontrei um lugar reservado, onde não podia ser vista por todos. Havia um forte fluxo de água corrente, e sentia o risco de descobrir o lugar enquanto dançava. Escorregava nas pedras e na água. Esta dança me deixou exausta, e me fiz refletir sobre a necessidade da pausa, a relação entre o recolhimento e a dissipação de energia. Quando parei de dançar vi que Eduardo (Rosas) meditava, enquanto Ciane dançava em sua frente. Mais tarde, o corpo de Ciane deitado emergia de dentro das espumas minerais daquela água escura. Terminamos a tarde com a performance de Suzane (Ohmann), que dançava com um figurino azul, cujas formas variáveis eram determinadas pelo seu corpo em movimento, causando um impacto visual na paisagem.
No segundo dia, performamos o dia inteiro. De manhã fui com Ana (Milena) para as ruínas de uma casa que havíamos visto no dia anterior. Analisamos rapidamente o espaço, escolhemos um lugar onde deixamos a câmera em um ponto fixo, delimitando o cenário da nossa improvisação. Comecei a dançar dentro de um cômodo das ruínas, onde podia ser vista do lado de fora. Fiz um jogo de abrir e fechar a porta com o meu corpo, antes de sair daquele espaço pequeno e sujo. Exploramos todas as paredes, muros, janelas, em diversos planos, dentro do ângulo da câmera. Conhecíamos o espaço na medida em que descobríamos os nossos movimentos corporais, explorando as possibilidades entre ambos. Às vezes buscava pontos onde pudesse apoiar uma parte do meu corpo para dançar com as outras partes, e pedaços das paredes ruíam pelo chão. O desequilíbrio do movimento era provocado pela decomposição das próprias estruturas espaciais. Havia mato, formigas e lixo. Em alguns momentos, a aproximação do corpo de Ana me estimulava movimentos e ritmos.Tivemos um público repentino, jovens que saíam de uma escola próxima do lugar onde estávamos. Eles assistiram à dança enquanto faziam comentários sobre o que estavam vendo.

Ao retornar da improvisação nas ruínas, encontramos com Líria, que sugeriu uma improvisação que lhe ocorrera enquanto descia a ladeira da feira. A imagem era de uma sacola de mangas que rompia, de modo que as mangas rolariam ladeira abaixo, junto com os dançarinos. Compramos 35 laranjas, Cláudio (Machado) ficou embaixo para gravar as laranjas e os corpos rolando ladeira abaixo. Ciane e Suzane chegaram e participaram da cena. Descemos a ladeira como se fôssemos também laranjas, no meio de um fluxo imprevisível de carros, motos e pessoas que transitavam com as suas compras. Interagimos com os transeuntes, que também se tornaram dançarinos. Fiz malabaris com as frutas. Oferecemos laranjas ao público-dançarino, e tivemos uma interação imediata. Me posicionei atrás de uma árvore, e estendi a mão para a rua, oferecendo uma laranja a quem passasse. Duas crianças recolheram a fruta oferecida. Uma senhora também recebeu a fruta e me perguntou o que eu estava fazendo. Eu disse que estava dançando, e ela respondeu: “Atrás do pau? Atrás do pau, não, né?... Algumas laranjas foram esmagadas pelos carros que passavam, outras foram levadas pelo público-transeunte-dançarino.
Depois do almoço, fomos para o Serrano. Havia muitos turistas, mas começamos a dançar de forma bastante espontânea, enquanto tomávamos banho de rio. Fiz improvisações na água de olhos semi-cerrados. Deslizava nas pedras, e em algum momento tive medo de que o fluxo da água me levasse, pois percebia que aos poucos descia mais o curso do rio, e havia uma queda d'água logo abaixo, cuja altura desconhecia. Encontrei Ana no processo da dança e começamos a fazer improvisação e contato na água, técnica que há meses vínhamos experimentando, junto ao Contiuum: Laboratório de Contato e Improvisação, coordenado David Iannitelli, na Escola de Dança da UFBA.

Este dia foi muito intenso, e apesar do cansaço, aceitava todas as provocações da performance. Depois de dançarmos no Serrano, decidimos encerrar os nossos trabalhos no Salão de Areia. Era fim de tarde e havia muitos mosquitos. Eduardo começou a cantar um mantra. Eu, Líria e Ana fomos performar nas árvores, havia um cheiro de umidade, o ar frio. Os mosquitos eram muitos, eles faziam parte da performance. Não tive forças para continuar, pois já havia dançado o dia inteiro. Eu e Ana ficamos juntas protegidas por um pano, enquanto assistíamos Ciane performando em uma árvore. Encerramos o nosso laboratório em um círculo, com duas palavras. As minhas foram experiência e natureza.

As reflexões e experiências com espaços naturais-urbanos, abertos-fechados, nas atividades desenvolvidas junto ao Laboratório de Performance e ao A-FETO, me esclarecem sobre a dissolução de tais dicotomias em meu processo de pesquisa com ênfase em intervenções urbanas, por mim denominadas poéticas micropolíticas. Observo que todos os espaços em que estivemos, além de possuírem em comum a qualidade pública, atendem a uma compreensão ampla de meio ambiente. A dissolução das dicotomias como referências de pensamento é trazida como uma
questão teórico-metodológica em minha pesquisa, quer se trate do sujeito-objeto, teoria-prática ou
natureza-cultura.



*Notas sobre as atividades desenvolvidas junto ao Laboratório de Performance e ao A-FETO, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia - PPGAC,UFBA 2011.

Link para vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=oniJoVwlCPY

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