EPÍSTOLAS PROFANAS: CARTA DE ABERTURA


Quem somos nós?
Se em nossas palavras ecoam vozes femininas, é porque somos múltiplas, desde as naturezas até as culturas nas quais nos construímos: mulheres.
Somos sujeitas desassujeitadas, por ora indeterminadas, nunca mais ocultas.
Somos múltiplas, não apenas porque reproduzimos a espécie humana ou acumulamos funções nas sociedades capitalistas contemporâneas, mas porque há uma multiplicidade que nos constitui, a partir das nossas cartografias sentimentais.
Somos instáveis, e é aí que mora o nosso perigo: imprevisíveis, não podem nos controlar, escapamos aos projetos estratégicos de começo, meio e fim, concebidos pelos racionalistas, na história escrita por eles.
Temos nossas razões, elas variam na medida em que as forças sociais nos lançam para lá e para cá, onde, às vezes, não gostaríamos de ir nem ficar. Entre a escuta e a afirmação de um desejo próprio, nos perdemos, pois habitamos a liminaridade entre um eu e uma outra, e queremos uma outra que nos respeite, em primeiro lugar.
Ainda desejamos amar em tempos de cólera, donde a guerrilha amorosa da nossa multidão.
Nosso lugar de fala é a poesia, vivemos garimpando esse lugar, para poder, enfim, produzir nossos discursos e defendê-los, nas searas legitimadas e legitimadoras dos saberes, e para que e para quem dizer tudo o que nem sabemos o que?
Há de se dizer o que: o silêncio. Mas ora, o silêncio não se pode dizer, ele é indizível. Aqui o objeto desaparece. Sendo abstrato, se concretiza na materialidade das cartas, uma saída possível?
Mas se não se pode definir um sujeito nem um objeto, como se poderia produzir uma linguagem e, ainda, como se poderia escrever uma tese? Tese para ser tese tem os seus critérios de definição.
Devemos assumir a nossa polifonia, como um corpo em transe proferindo vozes que não são suas, que estão fora e dentro de si: colegas, amigas, irmãs, pretendentes, rivais, dialogando umas com as outras. Há também as vozes imaginárias, que não pudemos assinar: Venuska, Maria Forasteira, Vitória, Sofia, Mulher Elefanta, Madame Silenciosa. Elas são as heterônimas que, também querendo falar, se manifestaram em nossos silêncios relativos.
Os discursos sem ordens a partir dos quais buscamos expressar nossas ideias fora de lugar, dada a multiplicidade da nossa essência, acabam por exigir escutas, olhares, leituras e perspectivas sempre novas.
Por desejarmos, também, o mundo que, apesar de tudo, nos convém, por não nos contermos em nós mesmas, é que nos aliamos às devires outras: às negras, às lésbicas, às travestis, às mães, às prostitutas, aos homens que conversam conosco e não sobre nós.
Os sertões são as paisagens dos nossos pensamentos, mas também escutamos os ruídos brancos dos mares, há entre eles um infinito comum (...)

Morgana Poiesis, Janeiro 2017.

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