ARREDIA

Lhe disseram que era uma mulher arredia. Então é verdade que lhe espiavam por debaixo da tímida simpatia? Não haveria de ser suficiente a experimentação frágil da desenvoltura, a diplomacia útil, o teatro do dia a dia? Tomou por boa vontade o adjetivo, tendo sido pronunciado por amigo próximo. E de amigo esperam-se as sinceridades mais indiscretas. Mas o fato lhe remetera, e com alguma seriedade, aos aspectos da sua conduta social.

Não poderia negar que escondia sob o chapéu a fronte, por vezes, um tanto circunflexa, quando não debaixo do guarda-sol, adereço providencial, ou, então, pendida para baixo, os olhos fitados no chão. Também a sua voz quase sempre segunda, feita mais para descansar os ouvidos de outrem. Havia, ainda, um silêncio que habitava seus gestos cotidianos, já anunciado em encontros primeiros.
O apontamento de um segredo é, deveras, desconcertante. E não poderia deixar de lhe trazer uma reflexão subitamente necessária, que não viria melhor de outro modo, por outra pessoa, em outra ocasião. Tornaram-se, portanto, as mais felizes palavras daquela noite, e muito lhe serviriam, a partir de então.

E como não poderia se furtar a tamanha provocação, pensou nos contornos que delineavam o âmago das suas relações. Quantas vezes não afastara com fúria o carinho oriundo dos seus mais íntimos afetos? Tampouco a ausência implorada atendia à sua incógnita. E em que grau, finalmente, os corpos que mais desejava lhe excediam?

Sim, estava nos recintos fechados nos quais se vestia, nas viagens solitárias, no desejo de despertar ouvindo apenas os pássaros que cantam cedinho, nas saídas repentinas, na falta de etiqueta, sua mais convicta opção.

O que lhe intrigava é que esse desejo por solidão não se fazia absoluto. Havia algo que lhe aprazia nos encontros profundos. Também o exercício da comunhão, o viver entre amigos, as visitas familiares, a empatia, o altruísmo, as encarnações involuntárias, a alteridade. Era com tamanha afetuosidade que mergulhava no outro, que, por vezes, pareciam suas as angústias alheias. Intimidava-se, inclusive, penetrando universos que, a princípio, não lhe diziam respeito, tomando para si os fluxos do mundo.
Havia algo de ambíguo no seu comportamento. Também se usava das luvas de pelica e, não raro, compunha os corpos em laço. E não se fazia difícil notar tais qualidades, embora conhecessem a sua força rebelde.

Talvez o limite tênue desses movimentos, ambos de uma intensidade difícil mesmo de se comportar, guardasse a fórmula do seu lapso, a incongruência do seu charme.

Caminhara passo a passo em sua reflexão, estendendo-a pelos dias próximos, até alcançar um ponto que, por ora, lhe bastava, de que se assim pousara no mundo, no exercício peculiar da existência que lhe cabia, na capacidade de confluir a brisa e a ventania, os lagos silentes e os mares revoltos, um de cada vez e ao mesmo tempo juntos, todas as entidades abrigadas em si, pretendera em algum momento, e quando ainda só pertencia a si esta constatação, a compreensão enquanto potência dos seus impulsos contraditórios.

Um pouco mais adiante, no exercício sensível do que lhe era biodiverso, na busca pelo limite onde, apenas aí, a vida se afirma, desenvolvera uma inclinação cônscia e, ainda, leve, ao que se apresentasse alegre, estritamente, e haveriam de compreender sua condição.

Morgana Poiesis, Bahia, 2009.

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