TRILOGIA: um romance em três contos


NOTAS DE UMA PRIMAVERA EMANCIPADA

Tudo começou naquela noite em que fora tomada pelo fogo e por tudo
o que queimava ao seu redor, a música, o vinho, a poesia. Perdera
a   noção   da   realidade,   do   tempo   e   do   espaço,   delirava   antes   que
fosse   cedo   ou   tarde   demais.   Precipitava­-se   numa   chuva   que   só
poderia   cair   tempos   depois,   que   exigiria   uma   espera   de   quem   não
sabia   esperar,   entre   a   paragem   atual   e   o   movimento   seguinte.
Respirava, ainda que quisesse soltar os cachorros da vila e viver
debaixo d’água, onde  poderia  fluir. Respirava  eufórica, entre  as
paisagens concretas dos desejos, falésias incontornáveis, imagens
sonoras   em   múltiplos   movimentos,   a   presença   do   passado   e   os
fantasmas ao vento. Em nada acreditava, apenas na certeza da morte
que lhe acompanhava desde quando o seu impulso de vida fora maior
que   as   possibilidades   do   corpo,   e   então   o   cuidado   que   implicava
quase sempre numa intermitência entre excessos e vazios. Assumira
a fatalidade da sua condição, sempre na encruzilhada entre o bem e
o   mal,   entre   mares   abertos   e   terras   sem   leis   de   ninguém,   donde
suas elaborações estéticas do drama, da tragédia e da crueldade.
Não   haveria   de   ser   mãe   nem   puta,   sagrada   nem   vadia.   Tampouco
salvaria alguém do seu abismo pessoal, pois assim era o seu jeito
de amar, como um espelho em que o outro haveria de produzir a sua
própria imagem, então multiplicada em duas ou em três ou em mais.
Toda   dualidade   lhe   parecia   insuficiente,   quando   alcançaria   a
síntese   menor,   como   nos   traços   minimalistas   do   último   touro   de
Picasso? Os banhos de ervas, as agulhas, nada aplacara totalmente
a  sua  fúria contida na  língua,  que  refletia ao  redor,  plácida  e
serena.   Anjos   e   demônios   sorriam   nesse   baile   de   máscaras.   Temia
pelo dia em que o azul límpido do céu se transformaria em brumas,
em que gritariam pelo seu nome de bruxa aos quatro ventos, em que
teria que deixar as cidades galopando veloz pelas montanhas, para
não   ser   queimada   na   fogueira   da   santa   inquisição   social,   nos
tribunais de uma moral que tampouco lhe convinha, sob os sinos que
já nem ouvia, entre as garras de lobos uivantes e os sacrifícios
de gênero, junto às outras como ela. Por ora, escutava os grilos e
os   trovões,   dançando   de   olhos   fechados,   tateando   ambiências   de
pedras tortuosas e explosivas, os riscos da entrega, dizendo tudo
sem   dizer   nada.   Logo   semearia   girassóis   para   cultivar   no   coreto
das   irmandades,   imaginando   que   poderia   levar   consigo   as   flores
dessa primavera que não se conteve em desabrochar antes mesmo do
final   de   um   inverno   rigoroso,   que   lhe   despertava   temerosa   nas
madrugadas, quando  aprendera  a sussurrar  o coro das constelações
às voltas da Nossa Senhora do Silêncio, sob os céus infinitos dos
sertões (...)


ENTRE BRUMAS E TROVÕES: UM LAPSO DE TEMPO

Os trovões vieram para lhe ensinar a força do tempo. Andava a
escutá­-los, como quem esperava pela promessa de chuva, ao final da
primavera   e,   como   desde   o   início,   se   precipitara,   tivera   que
devolvê-­los   aos   jardins   suspensos,   onde   outrora   se   queimava   em
fogueiras,   onde   há   pouco   colhia   jabuticabas   e   outras   estórias,
sussurrando os segredos mais delicados. 
De novo, num lapso, caíra no precipício, tropeçando entre a
melancolia e a pressa, quando acabara por ouvir novas trovoadas em
tons de preto, como nuvens carregadas de outros tempos, que pouco
se   abrandaram   na   casa   amarela,   restando   delas   apenas   as
representações de sua natureza, em traços infantis.
Logo mais tentariam matar os seus silêncios aos gritos, o que
lhe devolveria a fúria de Yansã que rodava a sua saia vermelha em 
outros mares, até que agora os lobos uivassem nas estepes dos 
sertões. 
Onde estaria a doçura levada pelas correntezas do amor?
E como depois do silêncio, o abandono, acabaria por encerrar a
inspiração poética de uma travessia entre a tempestade e a 
neblina.
As brumas, por fim, sucederiam aos trovões. 
As brumas que, com seus ares medievais, lhe guiavam pelos 
caminhos desconhecidos de quem confiava na força dos ventos e em 
suas direções. 
As brumas que, dissolvidas as densidades, se tornaram as mais
suaves das companhias.
Ah, as brumas... para não se deixar perder nas ventanias...


NOTAS DE UM OUTONO ANTES QUE TARDIO

(...) caiam as folhas ao vento, às margens do rio, sob o sol brando
de outono. As flores cultivadas na primavera haviam sido queimadas
ao calor mesmo do verão, e agora uma cesta com frutas apodrecidas
sobre   a   mesa,   de   tudo   que   colhera   nas   últimas   estações.   Olhava
para  ela  como  quem  contemplava  a  própria  morte, silenciosamente,
enquanto fumava o seu cigarro habitual, na porta da cozinha, logo
pela manhã. Lembrava de uma parábola em que as frutas estragadas
deveriam   ser   separadas   daquelas   em   bom   estado,   pois   estragariam
todo   o   resto.   Mantinha­-se   passiva   diante   da   necessidade   dessa
seleção,   a   inércia   se   sobressaía   à   consciência,   e   as   frutas
seguiam em um lento processo de desintegração, à sua frente e pelo
decorrer   dos   dias,   preenchendo   o   ambiente   com   um   dissabor
insuportável. Logo o outono se transformaria em inverno, e o que
seria dela se  degenerasse junto com as frutas? Sentia o aroma do
café   que   estimulava   uma   outra   atmosfera,   então   trabalhava,   até
voltar àquela mesma cena, na manhã seguinte, e lá estava a cesta,
intocável. A cesta, tão concreta, se transformara em um portal do
tempo   que   a   transportava   para   outras   paisagens.   Em   uma   delas,
andava a canalizar a terra para a passagem violenta das águas, que
desviavam   em   seu   curso   natural,   para   que   juntas   não   se
confundissem lama. Podia escorregar no limbo por entre as pedras,
no   mais   profundo   e   transparente   das   águas.   Na   paisagem   do   outro
dia, animada pela cesta, vislumbrava o final de uma travessia que
lhe fora atribuída desde o princípio das fugas que terminaram por
lhe lançar de volta ao seu abismo pessoal, quando a trilha sonora
ao fundo dos seus sonhos se calara. Então repousava, novamente, em
frente à cesta, na qual logo mais não restaria nenhuma fruta. Em
uma   dessas   manhãs   ensolaradas,   por   entre   tragadas   e   devaneios,
ouviu ranger a porta da casa e entrar correndo a filha da vizinha,
ofegante,   com   as   bochechas   vermelhas   e   os   cabelos   despenteados.
Ela aparecia  sempre depois  da  escola,  para  brincar  com  a  gata  e
contar   as   mais   inusitadas   estórias,   com   seus   ares   de   aventuras
infantis. Avistou a cesta logo que entrou na cozinha, foi direto
até   ela   e   não   hesitou   em   pedir   uma   fruta.   Tanto   insistiu   que
acabou   por   encontrar   algumas   em   perfeito   estado,   pedindo   que   as
levasse   para   casa.   Ao   ouvir   “sim”,   improvisou   uma   cesta   com   seu
vestido   estampado   de   pequenas   folhas   verde­-claras   e   saiu   assim
como   entrou,   veloz,   com   as   frutas   que   ela   mesmo   selecionara,
gritando pela rua: “mamãe, mamãe, consegui salvar essas frutas!” A
voz   da   menina   desaparecera   gradativamente   junto   com   os   seus
rastros. Esvaziou a cesta, finalmente, levando as frutas restantes
para   a   composteira,   no   quintal.   Olhou   para   o   céu   de   nuvens
esparsas   e   deu   graças   pela   criança   que   resolvera   o   dilema   da
cesta,   em   um   piscar   de   olhos.   Sem   que   o   soubesse,   ela   também   a
fizera   relativizar   as   suas   inclinações   existencialistas   e   a
desconfiar de que o outro não era exatamente o inferno, apenas o
espelho dos seus próprios demônios. Vestiu um lenço como quem se
mostrasse  pronta  para  a nova  estação,  distraindo-­se pela  pequena
cidade,   onde   desejava   apenas   viver,   enquanto   a   própria   vida   lhe
lembrava que era muito mais (...)

Morgana Poiesis
Pirenópolis-GO, 2017-2018.

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