DAS VOLTAS AO REDOR DO SOL


Sou uma mulher à beira dos 37 anos. Isso é tudo o que tenho sido. A identidade profissional, as competências técnicas, o status social, já não dizem tudo de mim mesma.

Estou em busca da aceitação de minha origem: sertaneja, mestiça, de uma família pobre e trabalhadora, carregada de tabus e contradições, como muitas outras. Tive uma educação repressora que, no entanto, me incentivou os estudos, embora não tenha tido condições de financiá-los. Todas as exigências sobre as mulheres, especialmente o casamento e a maternidade, ainda me são projetadas. “Queriam-me casada, cotidiana, fútil e tributável”. Do mesmo modo, o imperativo financeiro se manifestou, sobretudo, diante dos relacionamentos amorosos. Vejo isso como um tipo de prostituição legitimada pelas famílias cristãs de aspirações burguesas.

É possível que sejam sinceras as apreciações quanto à minha arte e competência profissional, ainda que saibam, não me ocupei, entre tantos anos de trabalho, em construir um patrimônio. Nada tenho, terra, casa, automóvel, objetos de valor, nada. Apenas o que preciso em cada circunstância. Aliás, tenho uma pequena biblioteca, que conservo como uma riqueza maior. Em nome desse capital simbólico, sou uma privilegiada.

Atuei em teatro, dança, audiovisual e performances artísticas. Encontrei nas ruas o meu palco preferido, sem roteiros nem direções, me colocando em contato direto com a diversidade com que se constitui um povo. Me dediquei às poéticas relacionais, por bastante tempo, como uma forma de superação dos meus limites pessoais.

Nos últimos anos, estive dedicada à produção de uma escuta e ao silenciamento da mente, ainda que escrevendo uma tese sobre isso. A partir desse lugar, revisitei memórias, produzi um estado de presença e renunciei às projeções do futuro. Também alcancei uma serenidade que nunca tive. Não estou disposta a abdicar disso. Perdi projetos e amantes para os silêncios que me habitam, como uma morada onde sempre desejei estar. Em sentido inverso, apontei os silenciamentos culturais que, também, me constituíram. Precisei discernir quais silêncios em mim eram voluntários ou impostos, escolhi os primeiros. Desejei cultivá-los e expressá-los através das artes. Fui incompreendida até encerrar um doutoramento nesse tema, que me garantiu o mínimo de respeito, em uma sociedade histérica e misógina.

Passei por várias transmutações, nesse ímpeto de vida que tenho em me reinventar a cada aurora. Sou uma nova mulher, fase após fase, a impressão que os outros guardam de mim é sempre algo que não sou mais, graças às deusas. Também não me precipito em uma reapresentação, deixo isso acontecer naturalmente. Se não acontece é porque não há motivos mesmo para acontecer.

Neste momento em que enfrentamos uma pandemia mundial, me sinto plena por este estado de ser em que me encontro. Sinto que construí as condições espirituais para suportar o que passamos. As privações econômicas e sociais me abatem dentro de uma determinada medida, não mais que isso. A despeito das questões geopolíticas que atravessam a crise atual, compreendo os revéses de uma força planetária. Sei que o ser humano é capaz de reelaborar as suas relações com a linguagem, com a tecnologia, com o corpo e com a natureza. Sei que todos mereceriam viver e morrer com dignidade, o que nunca foi real, se revelando agora em uma dimensão drástica.

Estou desapegada da minha própria humanidade.

Não espero que acolham bem as minhas palavras, seguirei escrevendo, mesmo assim (...)

Universalitas Comunitas.

Morgana Poiesis, 2020

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

*erf6r0ance d6 tec3ad6 desc6nf5g4rad6

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

CARTA PARA DRUMMOND