des-ilusão
Não
sei, exatamente, quando foi que me desiludi com a humanidade. Só sei
que foi com ela, essa senhora de quem sou filha, que me desiludi,
profundamente.
Houve um tempo, em que eu me apaixonava pelas pessoas,
elas me pareciam especiais. Certa vez, uma amiga me disse que eu via
uma especialidade em cada pessoa. Eu via mesmo. Talvez eu focasse no que
elas pareciam ter de especiais, ou até tivessem, talvez eu projetasse
nelas algo de especial que havia em mim.
De tanto me encantar com as
pessoas, me desencantei com elas. Romantizar as relações humanas é a
maior das ilusões. Vi deslealdade camuflada de companheirismo, vi
disputa camuflada de liberdade, vi aprisionamento camuflado de cuidado,
vi interesse camuflado de admiração, vi falta camuflada de afeto, vi
abuso camuflado de confiança. Vi dissimulação onde julgava haver
franqueza, vi a crueldade refletida no meu rosto. Vi a morte, algumas
vezes, ela me revelou o segredo da vida.
Hoje, vejo o mundo através
da lente do desencanto fixada nos meus olhos. As ilusões capitalistas
nunca me impressionaram. Já não me entusiasmo diante dos encontros que
tanto me moviam, ainda que, eventualmente, eles me surpreendam. Um
olhar, uma palavra, um gesto, um silêncio, me bastam. Prefiro a ilusão
das nuances do que a desilusão total. Eternizo em mim as dádivas de cada
instante.
Incapaz de suportar o absurdo da realidade (Fernando
Pessoa), tal como ela é, inventei um cais (Milton Nascimento), onde
pudesse ancorar os sonhos mais preciosos. Sei que só posso
compartilhá-los através da poesia. A poesia é real, ela atravessa o
outro, em sua impessoalidade, por já não ser mais minha. A poesia vive,
dentro e fora de mim, ela me convence de uma outra realidade.
Podemos
nutrir, em cada um de nós, uma pequena dose de ilusão. É preciso estar
consciente de que se trata de uma criação nossa, sem perspectiva de
qualquer correspondência. É preciso ser responsável pela própria ilusão,
bastar-se nela. Tenho o cuidado de não iludir o outro, como não me dou
ao trabalho de fingir orgasmos. É preciso saber cair, aos golpes do
mundo, como num jogo de capoeira. É preciso fluir na curva do rio, dar o
pulo da gata. É preciso ter noção da altura dos nossos sonhos e do
tamanho das nossas ilusões. É preciso saber voar em meio a uma queda
livre.
Para além da humanidade, vejo a esperança nas paisagens
concretas do Uni-Verso. Há em mim uma vastidão inabitável. Assim vivo,
sobrevoando mundos possíveis, construindo um castelo de luz (Florbela
Espanca) com as ilusões que me cabem e as desilusões que me invadem.
Morgana Poiesis
Des-ilusão:
posições ante o irreparável. Texto dedicado aos Estudos Indóceis - grupo online de estudos
praticados e escuta recíproca do And-Lab: centro de investigação em
arte- pensamento e políticas da convivência.
Brasil-Portugal, 2020.
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