CARTA PARA ARTAUD

 


Querido Artaud,


(…) é madrugada e as sirenes me despertam nessa noite branca, não sei como explicar as noites brancas, senão pela ausência da lua, ela se dissolveu na imensidão do céu, não há remédio para a noite desfalecida, não há esperança para o dia que nasce, nem para a vida que passa dia após noite, há uma vazio que me toma a cada passo e escrevo para reinventar esse vazio, pois é o que me resta, escrever, em terras frias onde o corpo não dança, ele se encolhe feito caracol, estou resignada, nada me leva a nada, senão alguns sorrisos forjados, alguns elogios de quem nada sabe de mim senão por aquelas imagens produzidas pelo imaginário coletivo, histórias inventadas, as pessoas produzem a mídia e a mídia é feita de imagens, agora somos nós quem (re)produzimos essas imagens, o dia nasce e não há perspectiva outra senão essa solidão cruel e antiga, quantas vezes eu ignorei a sua face sempre presente, eu não tinha coragem de olhar nos seus olhos profundos e negros, eu os cobria de encontros, pensamentos e substâncias ilícitas, até que me deixei seduzir pelo abismo desses olhos, a insônia é a dama da madrugada, que capricho de dama, vou embora para o fim do mundo, lá onde meu avô planta feijão e tudo é simples, sem esse existencialismo ultrapassado, porque antecipei tanto minha liberdade, e não há retorno, estou farta da responsabilidade de ser livre, eu me recuso a uma vida burguesa, me recuso, eu não suporto a rotina, o automatismo dos gestos, o dia nasce e meus olhos tintilam pela madrugada, eu sou o puro sobressalto desse Sol que nasce sem que tenha encontrado a lua, que labuta, eles me querem de pé, não, eles não querem a mim, eles querem a instituição e o discurso competente, eles querem o diploma e o mercado de trabalho, eles querem a lógica do capital, eu não terei mais ética alguma, nem cuidado, nem gentileza, esses anos que não passam, essa dívida, há o espaço-tempo que inventamos, eu não sei dar aulas, eu não quero o poder pois não há nada mais mesquinho do que o poder, há, contudo, essa vontade de saber e, ainda, essa vontade de fazer, que bobagem os nossos objetivos utilitários, vou escrever até a morte, sinto piedade pelos que me leem (…)


Morgana Poiesis, 2013.

Comentários

  1. Tão sensível. Tão alguns. Não tão nós no sentido de nossa época. Não há muitos assim... sensíveis... Estão dopados e não querem acordar. Preferem a monotonia chata de cada dia. Preferem fingir que são.

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