CARTAS PARA UMA TRANSPOETISA*

I

Você não sabe o conforto que tem sido a sua literatura, nesse cotidiano que pesava em nossos olhos, nessa presença em uma paisagem pretérita, atualizada por novos encontros. Que bom conjugar os verbos em um novo tempo, em que as coisas acontecem aqui e agora, ainda que por nós confabuladas. É o que temos feito. Somos gratas pela concretude compartilhada dos nossos anseios, questões, afetos e imaginários. As imagens não se delineiam com a precisão das palavras, embora não queiramos reproduzir o equívoco de mais um hiato, que assim seja, pois, corpo-palavra-imagem.

Lemos a sua carta diversas vezes, ela repousava em nossa cabeceira, por entre as rosas que João (Guimarães Rosa) desabrochava, antes mesmo da primavera, aos pólens de uma literatura menor e suas grandes veredas. Foi preciso uma pausa antes do café, enquanto o cuscuz denunciava a nossa identidade desde o início corrompida, foi preciso uma alteração incômoda e repetitiva dos hormônios, foi preciso ser assunto em um boteco de pouco requinte, em que os machos pintavam as fêmeas como objetos do seu domínio, para, então, corresponder às suas letras impressas em amarelo, a cor de Oxum. É em nome dessa entidade, ou dessa persona, se você prefere, que a palavra 'amor' ainda escorre em nossos lábios, embora Ela seja, apenas, o intermédio do nosso desejo.

Você também não sabe o conforto das suas letras femininas, desse devir-mulher na linguagem que construíamos e que, agora, se volta para nós, a cumplicidade. O diário não seria de todo suficiente, e as amigas de outrora vestem máscaras hostis, pois há novos territórios a serem defendidos.

Temos receio da sua maledicência. Não precisamos, mais, de uma leitura pervertida do desejo, que sejam sujos os nossos segredos, secretas as nossas confissões, ou mesmo confessas as nossas denúncias, ainda que elas partam e se multipliquem a partir de uma instituição primeira, a família cristã e burguesa. Será preciso uma profanação alegre e, para tanto, uma nova est/ética, construída no dia a dia do nosso convívio como (in)sujeitas sempre sociais, sempre políticas, apesar do capital e das leis que o protegem.

Não precisamos mais da eterna ausência daquela mão que Clarice (Lispector) reclamava, da filosofia como um portal inacessível, condição para a experiência de um corpo, um encontro ou uma paixão. “Clara... Clarinha... Clarice... ”, aos carinhos de Manuel (Bandeira) em uma sua correspondência, ela que nos acompanhou por tantos anos, também não merece o nosso abandono.

Há uma amiga que gostaria de escrever-te, contar-te, também, suas peripécias, ela que mais parece a versão russa de uma deusa grega, batizada por Venuska. Desconfiamos que ela será a correspondente ideal para esse devir puta que nos desafia, que a carta será o vosso único meio, sobretudo, pelo exílio que a guarda e justifica, pois a nossa querida V. não suporta os limites e as representações sociais de uma cidade, comportando-se como uma forasteira, sempre de passagem, nos deixando, apenas, as pistas para uma ambição maior, você sabe, de um romance decolonial.


Estaremos juntas nessa guerrilha.

Com os dedos de urucum.


II


Quando partimos para a Cidade Maravilhosa não era para os braços de Cristo que retornávamos, fazíamos daquela urbe uma zona de passagem, buscávamos, não apenas, uma mudança de Estado, mas, também, uma descentralização das metrópoles. Ademais, não nos interessa a reprodução histórica da migração nacional, que multiplicou o nosso nomadismo, se isso for possível, à maneira da colonização e, nesse caso, aos fascínios da mídia. A despeito disso, podemos te dizer que naquela viagem atravessamos ruas e instituições sociais, enquanto observávamos e éramos observadas, enquanto tentavam nos tomar de qualquer jeito, a ética que se nos anunciava aos apelos do Sudeste. E por não podermos nos demorar aos cuidados da tradição burguesa e religiosa de uma família e suas melhores intenções, dado o nosso comportamento fronteiriço que, eventualmente, pode ser interpretado como uma tática para reconfiguração de territórios movediços, partimos, como se fôssemos ELA(s). E que não tomem por ingratidão a nossa postura ou por crueldade as nossas palavras, tampouco a maledicência da qual você é conhecedora, que poderia nos conduzir a orgias secretas em divãs inconscientes, não fosse a nossa opção pela filosofia da diferença.

Pois ali, em uma tarde de domingo e de chuva, enquanto a nossa amiga M. gozava do prazer de estar só, por alguns instantes, lembramos da nossa amizade e tivemos o impulso de te escrever. Não o fizemos, contudo, pois, tomadas por ELA(s), transitávamos entre uma heterotopia e outra, do anonimato de um quarto de hotel à estação rodoviária de uma pequena cidade, por entre pontes e rodovias, sobre as quais vislumbrávamos as raízes profundas de um Brasil agrário. Lembramos das histórias que você nos contava sobre a aristocracia rural da qual é, ao mesmo tempo, oriunda e dissidente, essa última condição, em nós, comum, o princípio da nossa perdição. Sabia que também nós andamos a flutuar entre reivindicações identitárias, até nos resolvermos, recentemente, como índias portuguesas? E não é apenas a mestiçagem que nos caracteriza, mas, sobretudo, a nossa condição de artistas do corpo, e como você bem disse, pagãs, antropofágicas, produtoras de cartografias, bruxas. E para evidenciar a nossa antipatia social, desempenhamos com destreza uma síntese corpo-mente, eis nossa grande performance, somos putas intelectuais! Nossa composição é uma ameaça às estruturas que nos oprimem, quer em termos materiais ou simbólicos.

Foi por cumplicidade à nossa amiga M. que nos demoramos, ela que nos convida à uma estética pouco compreendida do silêncio, a qual não podemos aderir completamente, pois que em nós gritam vozes dos mais diversos timbres, volumes e ritmos. Cantemos, pois! E não é apenas o silêncio que nos sugere a nossa amiga, como uma personagem de Bergman, mas a insistência na preservação dos seus encontros, uma ambição demasiadamente humana de eternidade, seja em nome da arte, da política, do amor ou da natureza. Ela chega a nos dizer que não somos mulheres, em essência, e que, em verdade, não existimos, somos apenas uma produção do seu desejo, um delírio literário. Diante desse duplo que se nos apresenta, e por acreditar que respiraremos em uma multiplicidade de vozes e gêneros, tal como nos mostrou possível Hilda Hilst, em seu discurso sedutor, seremos leal à nossa amiga, ao nosso modo. Digo ao nosso modo pois essa lealdade não poderia ser julgada em termos morais ou dicotômicos e, embora prezemos por sua amizade e a reconheçamos como agenciadora do nosso encontro, também temos os nossos caprichos, somos criaturas rebeldes.

Apesar e em virtude dessa crise que experimentamos, peço que não demore a nos visitar, traga-nos flores, alfazema, nos dê um banho de ervas!


Beijos de chocolate.


III

Você compreendeu bem o caráter da nossa guerrilha ao reconhecer as questões sócio-históricas que atravessam o contexto público-privado da colonização que trazemos à cena, pois que ainda não superada ou vencida. Assim foi o nosso nascimento, também. O distanciamento entre os corpos, na representação política clássica e a impessoalidade burocrática, na política moderna, em nada correspondem ao anonimato que pretendemos em nosso romance, embora nos pareça interessante que a institucionalização desses modelos tenha provocado a própria ruína dos poderes instituídos, e as expressões artísticas correspondentes. Por ora, nos resta o paradoxo inerente à desconstrução que pretendemos, colocado pelos limites da própria linguagem e, eis nossa tragédia: não buscaremos uma nova verdade!

A expressão pública dos afetos historicamente condenados à esfera íntima, bem como as questões que vêm provocando conflitos épicos em nosso romance, não deixariam de revelar comportamentos sociais padronizados, em uma zona intermediária. É o declínio da flutuação, nesses tempos de melancolia. Os novos limites experimentados pela aproximação de esferas tradicionalmente opostas não poderiam deixar de trazer questões éticas pertinentes, sobretudo, no âmbito da cultura digital. Atravessamentos dessa natureza haveriam de causar, também, certa polêmica, na medida em que acabam por levantar temas velados, como a prostituição, a violência sexual, o aborto, e os crimes confessados por Tereza, a filósofa (anônimo erótico do século XVIII). Caminharemos juntas pela bifurcação contemporânea da política e da afetividade, e é apenas por não tratarmos de uma hierarquia estrutural, que não cairemos em uma espécie de nepotismo inevitável.

Andávamos a nos questionar sobre as abordagens individualistas do romantismo e da liberdade, até mesmo da razão existencialista de Simone (de Beauvoir), das bandeiras forjadas sob o véu de uma bondade duvidosa, como nos mostrou o tríplice lema da Revolução Francesa, que acabou por influenciar os nossos meios de produção, desde a economia até as artes. Disso teria decorrido, como você bem disse, o mito da miscigenação brasileira e de uma suposta identidade nacional, ainda que heterogênea, legitimada pelos heróis nossos de cada dia, seja nos romances de Amado (Jorge), que trouxeste gentilmente, ou na história político-partidária do nosso país, na ascensão e na crise da esquerda. O que temos, agora, é uma revolução molecular, a revolta das ditasminorias” que gritam como vozes, por vezes, ressentidas, o que poderia nos levar, como você mesma alertou, a tiranias equivocadas e ao mau uso do poder. Diante disso, não nos assusta que o exercício da liberdade que desejamos venha (re)produzindo, entre as pessoas, a mesma lógica de disputa do mercado liberal. Haverá um tempo-espaço em que poderemos conceber a prática comum da liberdade, em um Estado Livre, à maneira de Espinosa?

Te parecemos mais duras? Pois a aparência é falsa. Guardamos a ternura de Guevara (Che), sempre acreditamos que não haveria revolução social sem experiência amorosa, que o amor não é assunto restrito ou decadente, ainda em tempos de capitalismo, esquizofrenia e fragmentos globais. Buscaremos a abordagem ampliada de uma ecologia profunda, da qual fará parte a humanidade e as outras espécies sufocadas pelas ambições do seu antropocentramento, o amor como a mais potente expressão da alteridade. Tampouco esse afeto estaria livre de uma revaloração moral, como bem nos lembrou, o amigo do nosso amigo, quem nos ama não menos nos limita (Fernando Pessoa, através de Ricardo Reis). É preciso aprender a desamar, às vezes, ainda que amorosamente, pois costumam ser fatais os sonhos de um ego apaixonado.


Sabia que tentaram, por repetidas vezes, calar-nos, confinar-nos em uma posição absoluta? Fizeram ao nosso respeito uma leitura reduzida, como mulheres e como putas. Não compreendem que não se trata mais disso, que não somos nem uma coisa nem outra, somos apenas devires, estados de espírito e de corpo que se revelam a cada nosso encontro com o outro? E por que haveria de incomodar tanto essa palavra, p-u-t-a-p-u-t-a-p-u-t-a? Ela volta como o tapa na cara outrora prometido por um policial militar, uma ameaça camuflada de defesa, o papel da punição e da vigília. Se nada poderiam saber das bruxas as virgens, como escreveu, certa vez, o homônimo da nossa amiga M., em uma literatura desqualificada pela academia e pela igreja, o que poderiam saber os rapazes de família sobre a ética das putas, senão sob uma ótica pontual e perversa, uma moral oportunista e uma imaginação pornográfica que não apenas nos fere, como em nada representa o nosso desejo? Eles haveriam de reivindicar questões que lhe são convenientes, como o status social e a propriedade privada.


Pois não nos calaremos. Escrevemos durante a fuga que fomos capaz de criar em nossa rotina operária, a alegre criatividade que temos trocado em nossas tardes de chocolates e chás. Essa produção que nos anima, além da apropriação capitalista do trabalho, é a mesma que nos convida ao silêncio e à pausa, às sensações de prazer e repouso. Reforçamos que isso nos levará a uma nova est/ética, na qual haveremos de renunciar às nossas próprias autorias e, com alguma leveza, dançar diante as máscaras de poder que se deformam a cada riso nosso, como no carnaval e no realismo grotesco.


A linguagem é traiçoeira, escrever não é pecado, nem seria um privilégio de gênero. Será que, do mesmo modo que você matou T., à potência e impiedade de Nietszche, também precisaremos matar M., ou algo que nela nos detém? Lembramos que, para escrever, Virgínia (Woolf) também tivera que matar alguns fantasmas.


Receba nossas palavras de mel e pimenta.

* Cartas de Morgana Poiesis (Venuska) para Gisberta Kali, Vitória da Conquista-BA, 2013-2014.

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