CARTAS PARA QUERINO


 I 

 

Querino


( … ) então era mentira quando eu disse que escrevia para outrem aquela carta, gostaria de ter alguém para quem pudesse escrever uma carta, que houvesse saudade. Mais uma vez eu forjava aquele afeto, pois não é de mentira que se faz uma verdade? Precisava de uma mentira porque não existia uma verdade, pois não existe verdade
desde que Nietzsche me cortou com a sua lâmina impiedosa. Pois bem, inventei essa mentira, entre outras que não posso confessar, aquele outro que jamais responderia à carta que não era sua, e por não ser sua, nem minha, mas do mundo, eu que já nem apostava na universalidade de uma natureza humana, haveria de compreender o silêncio, o destinatário ofendido pela impessoalidade da sua presença, e os infinitos outros incapazes dela se apropriar como se fosse sua, era um capricho do ego. Mas eis, companheiro, que a poesia resiste, que há algo além de mim, de você, e de fulano, isso a que chamamos literatura, essa mentira, esse pretexto sobre o qual produzimos os encontros mais improváveis ( … )

M.

Vitória da Conquista-BA, 2013.

 

II 

 

Querino,


(...) finalmente respondo à sua carta (...) depois de dois anos de silêncio (...) espero que não interprete mal essa demora (...) estava produzindo as condições da escrita (...)

A cumplicidade literária que você demonstrou em sua primeira carta foi um grande estímulo para a continuidade das Epístolas Profanas, projeto literário que iniciava naquela época. Espero ter conseguido respondê-la, em alguma medida, com o bilhete instantâneo que escrevi em uma Poesia de Segunda, e que fez parte da primeira edição do livro-objeto artesanal que você ajudou a idealizar.

Percebo o cuidado implicado na feitura das suas cartas, a primeira datilografada, a segunda reescrita após a perda das originais, o que fortalece o poder das suas palavras. Imagino que um dia poderemos encontrá-las dentro de algum livro, e que isso faz parte do mistério das cartas.

Deve haver algo nos meus olhos que inspira a poesia, algo que não posso ver, e que me é indizível. Eu não me lembro da sua tradução de Charles Olson que você leu na Praça da Pedra, mas lembro de uma das nossas noites de poesia lá do outro lado da Conquista, de uma tarde na Lagoa das Bateias, e daquelas outras pelo Beco. Como cantou Sérgio Sampaio, lugar de poesia é na calçada, e isso se faz cada vez mais urgente. Também não conheço Robert Creeley, mas sei o quanto o olhar é caro à arte e à filosofia. Gosto de pensar a relação entre o olhar e a multiplicidade do eu, conforme Olson e Creeley, segundo você, ou como na sedução definitiva de cada passo, em nossa poesia. Há quem defenda, no olhar, ora uma projeção absoluta do sujeito ou do objeto, ora uma identidade de natureza, ora uma experiência de intersubjetividade. O olhar também pode ser visto como uma espécie de toque, em que tocamos a realidade com os nossos olhos, ao mesmo tempo em que ela também nos toca. Se o olhar instaura um estado de presença, a troca de olhares seria um encontro entre dois corpos, em tempo real. Talvez tenhamos nos visto menos na medida em que nos exibimos mais, em projeções virtuais. Haverá um tempo em que não precisaremos mais temer a particularidade dos olhos?

(o sol se põe na minha janela e os pássaros cantam, mas isso não é poesia, é apenas o instante em que te escrevo esta carta)

Na construção do pensamento ocidental está posta essa relação que você esboçou entre a palavra, a razão e a verdade. Pois bem, as palavras podem ser recessivas. Talvez por isso a minha busca pelo silêncio, pela libertação da palavra, da verdade universal, do peso da razão, da representação social. Mas o silêncio também pode ser recessivo, por isso a importância do jogo. A poesia é um desses jogos de linguagem, dessas mentiras mais verdadeiras. Mas ela é, antes, um estado de espírito.

Também estive cansada em minha última temporada na cidade cabra-cega, mas ainda havia o chá sob as estrelas, os olhos para a noite, o ritual.

Olhemos, pois! Concretizemos nosso desejo de produzir um movimento literário, e não apenas literatura. Há pouco, em outra cidade, escutei aquela máxima do Candeeiro, então desconfio que Roberto Piva tinha sua razão: só os encontros são reais.

Me dê notícias da nossa coletânea. Sinto por não ter tido condições de aceitar o seu convite para escrever o posfácio, naquele momento, mas gostaria de colaborar com o que estiver ao meu alcance, para finalizar a proposta.

A literatura agradece.

Os sertões também.

Eu, igualmente,

Morgana Poiesis

Pirenópolis-GO, Outono de 2017.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

*erf6r0ance d6 tec3ad6 desc6nf5g4rad6

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

CARTA PARA DRUMMOND