II CARTA A LA ABUELA

 

Vó,

está terminando o ano e não poderia deixá-lo ir sem te escrever esta segunda carta. Há exatamente um ano, havia te escrito uma primeira, pouco depois da sua partida. Agora consigo ter um distanciamento claro de quem eu era naquele momento, daquela que morreu no ano passado, mas que, neste ano, não morre mais. Ainda bem que temos a música popular brasileira, não é, vó?

A vontade de te escrever continuou, até que encontrei o livro Cartas para minha avó, da jornalista e filósofa brasileira Djamila Ribeiro, uma referência no feminismo contemporâneo, que muito me inspirou, me estimulando a prosseguir com essas cartas para a senhora.

Te escrever é profundamente terapêutico para mim, sinto que somente agora poderia fazê-lo. Não é porque a senhora jamais leria as minhas cartas em vida, já que não acessou o direito de saber ler, nessa língua colonizada, vó, mas porque agora posso te contar algumas coisas, memórias que latejam no corpo-mente de uma mulher à beira dos seus quarenta anos de idade, com suas próprias histórias para contar, ainda hoje silenciadas.

Estive na casa velha da beira do rio, há pouco tempo. O terreiro está verde, a terra úmida, as flores desabrocham em cores no jardim, as frutas fartam no pomar. Vovô chama pela senhora, conta fragmentos de causos, em seus lampejos de consciência. Faz contas antigas… dois mirreis, três mirreis... um tostão… Reza o Pai Nosso e a Ave Maria. Ele resiste, rumo ao centenário, sob os cuidados de suas filhas e de outras mulheres. A senhora também estava lá, clamada pelas orações nas novenas, sentada à mesa da cozinha, olhando para mim. Por que me olha desse jeito, vó? A senhora quer me matar de susto?

Nunca imaginei que a literatura pudesse nos conectar dessa maneira. Ela sempre foi para mim e, acredito, para muitas escritoras, pretexto de exílio, mania de poeta. Até que, de repente, depois de escrever para o mundo inteiro, me volto para a senhora.

Passei os últimos 10 anos da minha vida escrevendo cartas, vó. E para provar que carta não é perda de tempo, romantismo barato, escrevi uma tese de doutorado inteirinha só de cartas que troquei com pessoas de vários lugares. Até gente inventada. E fui aprovada. Verdade verdadeira.

Então, vó, a família está dividida depois de mais uma daquelas brigas de sempre, só que agora não há mais a matriarca para promover uma conciliação. Espero que nossos parentes estejam menos ressentidos no próximo ano, mas eu não tenho muita moral para desejar isso.

Sabe, vó, este não foi um ano fácil. Mas não é que tenha sido o mais difícil. Foi só mais um ano de labuta, desde que saí da sua casa, há 20 anos atrás, para estudar e encontrar um outro rumo para minha vida. Pois é, 20 anos. Sei que passei muito tempo distante, mas voltando agora, com mais presença, para a sua casa que nos abrigou depois da separação dos meus pais, tive um sentimento de gratidão. Era nessa casa que passava as manhãs viajando em livros, durante as férias na infância. Foi nela que estudei, no quarto à beira da janela, para concorrer ao vestibular que me tornou jornalista. E é ao lado dela, onde hoje é a casa da minha mãe, que ainda encontro a cumplicidade do silêncio para ler e escrever, longe dos ruídos do mundo que, no entanto, estão ali também.

Mas o silêncio é assunto para outra carta. Sim, outra carta, pois decidi que vou continuar te escrevendo, vó, como se pudesse te contar meus segredos, angústias, sonhos. Meus pensamentos e emoções. Sei que parece um ato ingênuo, mas ele me conforta, como se fosse possível deitar no seu colo, e você me escutasse, me tocando os cabelos, meus fios de ouro branco!

Vó, dizem que tenho muita imaginação. Tenho mesmo. Não fosse a arte, a possibilidade de uma realidade inventada, eu seria mais uma mulher enlouquecida pela sociedade. Mas sou racional demais para isso, e tenho uma tamanha capacidade de expressão, vó, uma força estranha que ninguém me tira. Mesmo em silêncio me expresso. Um dia te conto como foi que desenvolvi essa linguagem.

Nesta segunda carta, venho te pedir licença para selar este meu novo projeto literário. Talvez digam que eu seja ambiciosa, mas se eu dissesse que escrevo sem propósito, seria pior. Pois, é, vó, parece que até para escrever eu tenho que ficar dando explicações. Escrevo porque quero, e porque preciso também. É urgente.

Dessa vez vou ficando por aqui, antes que o ano termine, e eu comece a escrever umas cartas mais sérias. Voltarei a te escrever, em breve. Isso não é uma promessa para a senhora, vó, mas um compromisso comigo mesma.

Com saudade,

sua neta.

m.

30 de Dezembro de 2022

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