I CARTA A LA ABUELA

Vó,

há tempos espero para te escrever esta carta. Tudo o que parece ser demasiadamente especial para o ritmo do mundo me exige um silêncio maior, ele mesmo produzido no contratempo necessário.

Então, hoje faz sol, chuva, arco-íris e lua cheia, ademais atravesso meu rio vermelho, a vida-morte-vida que me faz renascer a cada ciclo, e me ensina a deixar morrer para fluir a energia vital.

A senhora me apareceu em sonho, certa noite É verdade que eu já evocava a sua presença, desde quando me encontrei ferida na clareira de uma floresta, onde te via à minha volta, junto com índias, caboclas, ciganas e curandeiras, em meio aos lapsos de minha lucidez.

Desde que a senhora se foi, apenas a reconstituição da sua presença me conforta. Diria que te sinto mais presente agora, quando não há uma realidade geográfica entre nós duas, superada, portanto, essa materialidade implacável. Como se antes a senhora estivesse sempre longe, no seu lugar, e agora estivesse sempre perto, dentro de mim. Precisei da sua partida para poder acessar essa conexão, levo comigo os amuletos que herdei com afeto e responsabilidade.

Desde muito vislumbrei a ancestralidade que se manifestava na cor da sua pele, nas estórias de uma tataravó “enlaçada no mato”, que compunham o nosso imaginário de forma tão naturalizada, nos fazendo questionar de onde é que vinham os ressentimentos mais inconscientes, que somente agora se revelam em uma perspectiva sistêmica. Ainda assim, é preciso expor aos que se fazem de desentendidos, enquanto reproduzem violências que juram combater por meios impróprios.

Escrevo antes que a avalanche de uma nova normalidade se instaure de maneira igualmente naturalizada em minha vida, eu que tive o privilégio de me resguardar durante a pandemia. Às vezes, me sentia mal por estar me sentido bem, isolada das tragédias sociais, além de reconhecer o fato de que não há nada mais trágico do que a sociedade que construímos.

Te escrevo porque não existe amor no fim do mundo, mas encontro paz nos silêncios que crio. Não fosse a sua presença que agora me acompanha, seguiria em meus solos longínquos e contrários aos abusadores que figuram nos álbuns de família, com o consentimento de todos, nesse exílio supostamente voluntário, já que conviver não suportaria.

Me lembro da nossa última temporada juntas, em que precisei ficar distante para preservar a sua saúde, observando o diálogo silencioso que a senhora parecia estabelecer com as plantas. Daqueles dias em que, na cozinha da sua casa, um coro de tias me inquiria sobre o tão celebrado contrato de casamento, como se, a essa altura, ainda fosse imprescindível uma representação masculina para legitimar minha existência. E como tem me custado dizer “não” ao matrimônio, embora esteja certa de que dizer “sim” me custaria ainda mais, dadas as evidências imediatas. Para além dos assédios, preconceitos e exclusões que envolvem a vida de uma mulher comprometida com sua autopoiesis, o ônus maior parece ser aplicado pelos homens que dizem me amar. Foi preciso anos de experiências e a inauguração, senão a retomada de uma consciência coletiva, para compreender o padrão da insegurança masculina que se converte em castigos, chantagens, ofensas, manipulações, intrigas, traições e toda sorte de gatilhos pelos quais sou culpabilizada, ao não cumprir determinados papéis sociais e historicamente construídos, colocando sempre em xeque o meu jeito de amar. Vejo as medidas do que seria amor negociadas conforme me submeto ou não às imposições desses padrões relacionais, de tal maneira apropriados pelo capitalismo patriarcal, que não vejo como respirar senão nas suas frestas consideradas, ainda hoje, perigosas, insustentáveis e marginais.

Ah, vó… escrevo porque não vou me render… sobretudo agora que posso acessar a sua força em mim! Talvez o amor me convencesse mais pela grandeza dos seus gestos do que pelas suas conveniências e convenções. Haverá a sua potência de ser sempre aniquilada pela inconsistência da forma? Talvez o que desejo somente seja viável em uma perspectiva universal, mesmo para mim, que tanto acreditei na singularidade dos encontros.

Escrevo, finalmente, movida pelo entusiasmo da promessa de receber uma nova carta, quando julgamentos recentes apontavam para esse meu projeto de interlocução como “fora da realidade”, quando se trata da produção de uma outra realidade possível, considerando o pragmatismo da própria linguagem.

Por fim, guardo a lembrança da alegria de vovô ao seu lado, da devoção dele à senhora até os seus últimos dias de vida, o que talvez seja a minha maior, senão única, referência de lealdade. Não por acaso, é a sua casa que me aparece em sonhos como um lugar de familiaridade inquestionável, eu que a nada pertenço, senão à infinitude do cosmos.

Enquanto resisto nas labutas deste mundo, siga em paz, abuelita...

Com amor,

m.

Fevereiro/2022

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