CARTA PARA UM GEÓLOGO

E.

Venho, finalmente, responder à carta que você me escreveu, como colaboração técnica para a pesquisa do documentário Sysyphus, que gravamos na Gruta da Mangabeira, em Ituaçu-BA, e também na cidade de Salvador-BA.

Começaria te agradecendo por sua contribuição tão valiosa, que muito nos ensina, não apenas sobre a formação geológica da Chapada Diamantina, mas também sobre os possíveis diálogos entre a arte e a ciência, em uma dimensão interdisciplinar.

Em um segundo momento, justifico minha demora ao respondê-la, não apenas devido aos contratempos que tive neste último ano, mas, sobretudo, pela própria natureza das cartas, que demandam mais profundidade, e, portanto, mais tempo de maturação, ao passo do que temos experimentado com o imediatismo das redes sociais.

Confesso que, me deparar com um conteúdo tão específico da geologia, também me intimidou, de uma certa maneira. Senti na pele como é receber uma carta tão contundente sobre determinado conteúdo, como me disseram alguns correspondentes que jamais me responderam, com essa justificativa.

Levei a sua carta comigo todo esse tempo, ela ficara à espreita de minha resposta, em cima da mesa, em meio a outras leituras, e, entre mudanças, também fora perdida, até que, finalmente, encontrada, a propósito, por entre as Cartas do pequeno príncipe (Antoine de Saint-Exupéry).

Eis-me aqui, diante da tentativa de uma resposta. E se foi preciso tantos bilhões de anos para que se formassem as estruturas geológicas que hoje temos em nosso planeta, para que pressa, não é mesmo?

Sobre os conhecimentos específicos, pouco tenho a dizer. Leio e releio a sua carta, como uma eterna aprendiz, com uma curiosidade que nunca cessa, donde minha inclinação para a pesquisa, donde também a vontade de quem viaja, como um geólogo em atividade de campo, garimpando pedras e aventuras.

Sabemos pouco sobre a Terra que habitamos. Esse pouco saber, tão restrito me parece, nos leva, às vezes, a subestimar o nosso patrimônio e, com ele, a nossa própria história. E como sem passado não há futuro, vivemos um presente muito raso.

Adentrar a Gruta da Mangabeira, em sua atmosfera úmida e superfície calcária, assim como a travessia da Vargem Grande, que trilhamos juntos, é adentrar nas profundezas de nós mesmos, parte que somos desse todo que parece fora, mas não está.

Paisagens externas e internas se misturam em quem se deixa atravessar, como as grandes veredas de João Guimarães Rosa. Foi ele quem me soprou um pouco de literatura, enquanto lia a sua carta, fazendo conexões entre as bacias sedimentares da Bahia, de Goiás e de Minas Gerais, subindo e descendo entre os relevos e as depressões de todas as serras, planaltos e planícies dos nossos sertões, esculpindo pensamentos.

Na carta, você responde à provocação que fiz naquela noite, em que eu, você e G. tivemos nossa primeira conversa sobre Sysyphus, a respeito da máxima popular que tanto nos intriga, de que o sertão vai virar mar. Essa relação me leva a um devaneio poético, já que cientista não sou. E quando você explica que o sertão já foi mar, ao final do ciclo final de sedimentações, vejo nessa profecia reversa, mais do que um delírio do imaginário popular brasileiro, uma vontade íntima do inconsciente coletivo, de retomar às origens de tudo, como uma busca de si mesmo, ainda que nem houvesse vida humana no planeta naquela época. Cada vez mais reconhecemos as memórias celulares de nossas ancestralidades, mesmo em suas formas não humanas, e acredito cada vez mais que deslocar-se do antropoceno seja uma nova virtude a ser cultivada, um exercício de alteridade radical.

Não é só porque brinco com as palavras na busca de um novo sentido, que vejo os nomes de tantos lugares diferentes no Brasil fazendo referências uns aos outros, quando não a uma etimologia indígena, em parte não colonizada pelo genocídio europeu. Há algo que resiste em nossa cultura, camuflada entre neologismos e miscigenações, revelando potências singulares, em meio a todas as violências materiais e simbólicas, que ainda não superamos.

Um deles é o Rio Mato Grosso, que você cita em sua carta, onde estive na minha última viagem a Ituaçu, cidade também de etimologia indígena, antes de vir para o estado de mesmo nome. Sim, estou aqui, em Cuiabá, para um estágio de pós doutorado em Estudos da Linguagem, na UFMT. E se me desloco do assunto principal da carta, é porque tive em você um interlocutor também para esse projeto, desde que me flagrou entre livros, na biblioteca da UESB, onde também se refugiava na esperança de uma outra realidade possível através de leituras, além daquela vivenciada em um plano mais imediato. Meu projeto de pesquisa atual, a propósito, é seguir com a Cartografia Epistolar como método e forma de pesquisa em artes, na qual você apostou, quando me escreveu aquela carta.

Sim, E., há muitas formas de se produzir conhecimentos, e se invisto na carta, é porque desejo uma partilha em sua própria essência dialógica, diante de tantos silenciamentos culturais e educacionais. Acredito que, não por acaso, Paulo Freire também tenha se dedicado ao gênero epistolar. As cartas, que me levam, muitas vezes, a digressões metalinguísticas, se apresentam como um recurso polivalente, quer seja político, terapêutico, diplomático, literário, biográfico, e tantas funções mais ainda inusitadas, além de uma pessoalidade que se opõe ao binarismo sujeito-objeto ditado pela representação clássica do pensamento.

E quado você traz a geologia da Bahia, de onde sou natural, das chapadas onde estive de forma mais despretensiosa, seja Ituaçu, Mucugê, Lençóis, Rio de Contas ou Barra da Estiva, eu me vejo pelos seus olhos, nesse caleidoscópio transpessoal, fundamental para nossa própria constituição individual como seres sociais, ou, se prefere, nossa constituição social como indivíduos.

Mas volto aos apelos da objetividade, dando notícias do filme, que está quase pronto. Entre o roteiro previsto e as experimentações inevitáveis da arte, chegamos a um consenso onde o documentário superou a ficção, e a realidade à imaginação, aos moldes dos parâmetros televisivos, que acabaram por projetar o cinema na indústria cultural, de maneira irreversível. Entendemos que isso foi necessário, e contamos com uma outra profissional na montagem, com sua sensibilidade peculiar e formação especializada.

No mais, a despeito de nossas psicogeografias tão específicas, para as quais recusamos a qualificação de regionais, em uma perspectiva etnocêntrica, em Sysyphus tratamos de um tema universal, como você deve saber, o sentido do ser humano frente ao imperativo do trabalho, em suas mais diversas condições, cada vez mais apropriadas pelo capitalismo patriarcal.

Assim como os rios que cortam as paisagens, obstinados em seu destino, ao mesmo tempo sábio em seus desvios, resistimos em nossos sentidos mais poéticos. Porque viver não é preciso, já dizia o poeta português sobre outras navegações, diluindo fronteiras, por entre as camadas mais sensíveis da arte.

O tempo é mesmo relativo. Se as grutas, que nos parecem tão antigas, são das formações geológicas mais recentes, em que bases se sustentam os ambiciosos arranha-céus? Não sei, nem agora quero saber. Por ora, mais me interessa imergir entre o Amazonas, o Cerrado e o Pantanal que me cercam por aqui, encontrando meus instintos mais selvagens.

Espero que esteja bem em sua nova jornada, e que o amor pelo saber e seu compartilhar siga transformando vidas e relações humanas.

Um abraço,

Morgana Poiesis

Cuiabá-MT, 01 de julho de 2023.

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