CARTA PARA DRUMMOND

 

Querido Drummond


Consegui uma licença profissional para te escrever esta carta. Mas gatos não entendem nada de profissionalismo. Deve ser por isso que amo os felinos.


Desde que você partiu, meu coração ficou pequenino, do tamanho que você nasceu. Cora, sua mãe, que ainda está entre nós, deu luz à você e ao seu irmãozinho que veio primeiro, mas não sobreviveu. Então você nasceu, eu esperava outros tantos gatinhos, mas foram apenas dois. Me disseram que gatas adolescentes têm pouca ninhada. Cora miava e miava, lambendo seu filhotinho natimorto. Retirei o corpinho dele, enterrei no fundo do quintal, ao lado do pé de babosa. Logo foi a sua vez, que deu certo. Tudo isso aconteceu dentro do meu guarda-roupas, que acabou por se transformar em uma pequena maternidade. Todos os dias pela manhã, quando eu acordava, ia ver se você estava respirando. Você dormia enroscado em si mesmo, estava sempre de olhinhos fechados, mesmo quando acordado, procurando as tetas da mamãe. Um dia você abriu seus olhinhos redondos e cinzas, começou a passear dentro da gaveta, então te peguei pela primeira vez, você cabia na palma da minha mão.


Depois você começou a se movimentar em espaços maiores, até descobrir o caminho da sala, onde te encontrava dormindo todas as manhãs, em cima do sofá. Você e Cora aqueciam meu inverno naquele lugar. Você gostava de ficar embaixo do lençol que cobria o estofado, escondidinho, mesmo quando cresceu. Sim, você cresceu, forte e saudável, não fossem aquelas pulguinhas que devem ter pulado da sua mãe em você, depois que ela fugiu do apartamento para onde nos mudamos. Cora, que encontrei abandonada em frente à casa em que morava antes da mudança, preferiu viver com os seus iguais, uma família de gatos abandonados que havia ao lado do nosso prédio. Demorei um tempo para reencontrá-la, e outro maior para conseguir resgatá-la. Ela, que era branca como um floco de neve, voltou marrom da cor da terra, e tão magrinha, magrinha, nunca mais voltou ao peso que tinha.


Castrei vocês dois em uma clínica solidária, que insistiu em instalar chips de identificações em seus corpos, com dados nos quais eu era a tutora. Tive uma longa discussão com a idealizadora desse projeto, sobre o biopoder e o uso dos dispositivos eletrônicos na sociedade do controle, mas ela foi irredutível, assim aceitei a condição para conseguir castrá-los pela metade do preço de mercado.


Você se recuperou bem da castração, mas Cora não se adaptou ao chip, ela começou a se ferir no local onde ele havia sido colocado, como um grão de arroz ao lado do pescoço. Essa era minha tese, mas também poderia ter sido mais uma contaminação dos seus tempos de rua. Fizemos um tratamento alopático, logo ela se recuperou.


Novamente precisei me mudar e deixei vocês dois, provisoriamente, na casa da minha mãe. Cora, mal chegada, já sumiu no infinito do quintal, você ficava escondido debaixo da cama. Eu sabia que você teria mais dificuldades de adaptação do que ela, que é uma saltimbanca, mas apostei que acabaria se desenvolvendo, no seu ritmo e ao seu modo.


Você, que tivera pouco contato com o mundo, além de mim e de Cora, logo mais também da minha mãe e de outros familiares, parecia muito retraído e apegado. Gostava de saltar no meu colo quando eu sentava no sofá e fazia yoga comigo. Também me massageava o útero em dias de cólicas, com suas patinhas pequeninas. Até quando precisava te dar banhos, você me lambia.


Drummond, meu pequeno Drummond, precisei passar um curto período de tempo distante, você não resistiu. Foi parando de comer e entrou em depressão. Até que minha mãe me telefonou dizendo que te encontrou sem vida, debaixo do sofá. E todas nós ficamos de luto por você, que foi enterrado na beira de um rio. Escutei seus miados e sonhei com você algumas vezes.


Precisei das notas de um piano solo para me consolar. Não só pela responsabilidade mal cumprida, mas pela melancolia da impermanência.


Desde então, alguns gatos e outros animais criados soltos vêm me visitar. Eles gostam do silêncio e aconchego das minhas casas. Mas sinto que não posso acolhê-los definitivamente, ter animais de estimação. Não tenho estrutura para seres domésticos. Estou ficando cada vez mais instruída e selvagem.


Não sei como é a vida após a morte para os gatos. Sobre os humanos há muitas especulações. Imagino que você possa encontrar Bruma e Anais Nin, minhas outras gatinhas que também já partiram. Mas a verdade é que continuo cética, sem acreditar em muito mais além do presente, de que, por fim, voltaremos como matéria orgânica para a mesma terra que nos pariu.


Há quem diga que tudo isso não passa de uma projeção da minha própria humanidade, mas eu te vejo como um outro ser vivo, assim como eu e diferente de mim.


Vai em paz, meu gatinho.

Com amor,

Morgana


Chapada dos Guimarães, MT, 14 de dezembro de 2023.

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