DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

Querido diário,

é madrugada e tenho sido despertada por muitos pesadelos. Te escrevo porque, neste momento, não tenho correspondentes. Você sabe que sempre fui uma escritora de diários, até encontrar, na carta, uma outra da outra da outra, ainda que com-fabulada. Não é que você seja nada ou ninguém. Mas todos sabem que escrever em um diário é como se fosse para si mesma. Sei que você vai compreender meu jogo de palavras.

Você lembra daquele corredor silencioso, onde fiz a entrevista do pós-doc? Eu estava em uma selva de pedras, com-correndo a dois processos seletivos, ao mesmo tempo. Sim, eu estava desesperada para me libertar de uma condição profissional opressora, ainda que pudesse entrar em outra. Cheguei a fazer um registro em preto e branco daquele tempo-espaço, mas tal lembrança me causava tanta angústia, que a deletei dos meus arquivos, como uma eterna editora de mim mesma. No entanto, aquela imagem me volta constantemente, porque me observar dentro dela foi como um sinal, no qual eu não poderia deixar de pensar. Pois bem, era um corredor vazio, dentro de uma universidade, onde havia gabinetes individuais de pesquisadores pós-pós-pós-doutores, por aqui intitulados PhDs. Era branco e profundo. Tal silêncio só não se fazia absoluto porque chovia, então, escutavam-se os grilos que cantavam do lado de fora de uma das duas janelas que havia no começo e no final do corredor. Ademais, ele era tão fechado quanto sufocante. A entrevista atrasou quase meia hora, que me pareceu uma eternidade. Me sentia como uma noiva indecisa, que ainda podia fugir do casamento, em uma cena triunfal. Mas o pensamento que estava materializado na arquitetura à minha frente era claro: será que estou indo para uma solitária acadêmica? Pois ver aqueles inúmeros gabinetes individuais trancados, em um corredor tão estreito, era diferente de ir para um abatedouro, minha impressão primeira, onde haveria, ao menos, uma grande massa encurralada. Sim, pensei e pensei no modo como se produz conhecimento acadêmico. Mas eu não poderia voltar para o buraco negro de onde vinha, era preciso atravessar o corredor do pensamento. E pensei nos saberes produzidos em rodas, que a academia reconhece como honoris causa. Ela, que se legitima a legitimar. Muitos me atacam por estar na universidade, que é atacada por existir em seu modus operandi. Os ditados populares têm sempre um fundo que, se não é de verdade, é de sabedoria.

É caso de notório saber o quanto o ambiente acadêmico pode ser patológico. Na realidade, o mundo está doente, é por isso que prefiro escutar as araras, os tucanos, as corujas e os pica-paus. Eles me contam segredos inconfessáveis. Mas a especificidade acadêmica é aquela analogia entre saber e poder, já denunciada por Michel Foucault, nela consolidada pelo discurso competente, termo que trago de Marilena Chauí.

Pois é, diário, até para te escrever, me vêm as referências. Elas já fazem parte do meu repertório de reflexões. Mas voltemos à imagem do corredor vazio como ele só: quando me tornei pós-doutoranda, perdi os meus iguais. Na realidade, eles existem, mas estão como eu, ilhados em outros Programas. A primeira coisa que notei, ao olhar para os lados, foi não ver os meus pares. Mas o engano foi todo meu, que procurava na direção errada. Eles estão abaixo ou acima de mim. E como sempre tive medo de alturas, me torno paralisada. Para os estudantes sou professora, para os professores sou estagiária, para os técnico-administrativos sou o que sou mesmo, uma estranha no ninho, sem número de cadastro. Para a instituição de fomento, não passo de uma bolsista, que deve produzir em números compatíveis com o valor que recebe, para registrar tudo em um relatório final. E, por fim, eu pensava, naquela eternidade da espera pela entrevista, que meu método não me deixaria sozinha. Veja bem, não me refiro apenas ao objeto de pesquisa que escolhera, um coletivo de outras escritoras como eu, mas ao método que precisei inventar para não cair no monólogo acadêmico: a carta que pressupõe uma outra. Então, na contagem regressiva, ao fim do túnel que ainda não atravessei, senti a brisa do esperançar, verbo que conjugo com Paulo Freire, o mestre dos mestres. É ele quem me ensina a ser professora, essa profissão que me escolheu, porque eu mesma, você sabe, escolhi a arte.

Querido diário, que bom te reencontrar após dez anos de outras escrevivências. Espero que não tenha se ofendido por eu ter ficado tanto tempo sem te escrever. Foi só porque não me bastou ter objetos de discursos, andei buscando por sujeitos de diálogos.

Assim mesmo, espero que possa me escutar outras vezes, com o seu silêncio acolhedor.

Com sentimentos,

m.

22/02/24

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