NARRATIVA PARA SYSYPHUS

Morgana Poiesis e Isaac Souto. Fotografia: George Neri. Salvador-BA, 2022.
 

Há um ponto em que me coloco absurdamente distante da realidade para poder, ora contemplá-la, ora refleti-la, ora me refletir, mesmo, nela. É quando não apenas me identifico com minha própria vida, mas também a estranho, ou sou eu mesma esse ser que estranhamente vive e questiona o sentido de viver, quando tudo o que é valioso vem depois da necessidade essencial de sobrevivência. Este filme é um ensaio sobre viver para não apenas sobreviver. Sobre o pensamento através da linguagem, e para além dela. Sobre ser humana e existir enquanto tal, donde a arte, a filosofia, a representação simbólica.


Ser livre dentro do capitalismo global seria poder escolher o que dele me convém. A ilusão de estar à sua margem não oferece liberdade de escolha. Estamos prisioneiras do liberalismo econômico, e não vislumbramos saída da mais valia, embora confabulemos economias criativas e culturas colaborativas. Embora elogiemos a solidariedade, a gentileza, a caridade religiosa, viva o povo brazileiro!


Ter a sorte de ter um emprego que me oprime. Ou ser autônoma e trabalhar sem deveres nem direitos, senão a responsabilidade da própria consciência que, por vezes, flutua. Flutuações da alma, como pensava Espinosa, na teoria dos afetos. Flutuar sobre superfícies fluidas ou concretas, como tática de sobrevivência na selva de pedras e mar. Flutuar com as asas do desejo sobre a cidade que me habita, para não ser engolida por ela. Flutuar entre a realidade e o sonho, o documentário e a ficção, a história e a arte, o trabalho e uma “vida lazer”, a morte e a vida, o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, para além do bem e do mal. Flutuar como um exercício somático de meditação sobre a própria melancolia. Flutuar para não sucumbir ao peso do mundo, como meio de resistir aos comportamentos padronizados pela moral societária do Estado, da religião, da mídia, da família. Flutuar como quem incorpora a densidade da água, e se relaciona com ela, projetando-se em uma estrela marinha, na forma humana. Flutuar como a água viva de Clarice, em sua felicidade clandestina. Flutuar sobre o perigo que precede o mergulho.


Atravesso a rotina diária com algum fôlego para sonhar. Posso imaginar Sísifo feliz, como concluiu Camus. Às vezes, encontro o sentido da vida na realização do próprio fazer, em ser funcional, pragmática. Em produzir o que acredito ou mesmo em cumprir os objetivos do ofício, ainda que não me identifique com ele. Em algum momento dessa repetição, não produzo mais diferença, sou o que faço, em última instância. Às vezes, o trabalho se torna o mal que me consome e me sustenta, como na literatura seiscentista. Entre as polaridades da vida, encontro pontos de respiro, que por vezes só me aparecem nas brechas do cotidiano, como quando o feixe de luz invade a janela fechada, me lembrando que existe uma realidade autêntica, para além da caverna de Platão.


Entre vielas urbanas e virtuais, vejo zumbis em formas de gentes. Mortos-vivos. Pálpebras caídas, olhares vazios, pessoas distantes. Ausentar-se parece ser a nova forma de parecer presente, na cultura digital, na sociedade do espetáculo. A busca pelo ar, por entre essa sensação de sufocamento das máscaras sociais, da representação do eu na vida cotidiana. Respirar, um ato vital que nos desafia no século XXI. Inspiro, expiro, na disritmia incessante dos tempos pós-modernos.


Posso ver. Por entre lentes, telas, paredes de vidro. Posso ver com os olhos d’água, em uma profundidade translúcida. De dentro, vejo o que está fora e, de alguma forma, estou lá, lançada pelo olhar que toca a superfície do mundo que me toca também. “Não existe mais hiato”. Fenomenologia da percepção. A eu profunda e as outras eus multiplicadas à maneira da impessoalidade de Pessoa.


Vejo imagens em movimento, ainda que estáticas, no cinema que está de luto. Vejo o suicídio assistido de Godard, de quem teve coragem de dizer não, da revolta metafísica do cineasta. Ou ainda, dos suicidados pela sociedade, pintados no amarelo de Van Gog, inscritos no fatalismo de Florbela Espanca, no passeio sem volta ao farol de Virgínia Woolf, a mulher que matou o anjo do lar. Miragens de um terceiro olho na solene despedida dos que decidem por si, céticos de um propósito maior, de uma intervenção divina. É Setembro Amarelo no Brasil pandêmico e eleitoral. Suicídio, atitude individual e fenômeno social. Paradoxo da humanidade frente à natureza da vida. Revolta do sujeito projetado contra si, em sua autonomia radical, quando não esquecido de si próprio. Mas vejo a vida se afirmando, a despeito disso, e ela há de ser uma dança maior entre a liberdade, a esperança e a morte.


A realidade, contudo, é absurda. Criamos para viver duas vezes, para não nos resignarmos sob um destino qualquer, função histórica, papel social. Mas a revolta da artista parece, ainda, ingênua, em sua dimensão pessoal, donde o movimento cultural da revolução artística. Transcender as ideias pela materialidade da linguagem, de um pensamento imanente. Criamos, ainda, para superar a própria revolta, sem a pretensão de sermos revolucionárias. Mas criamos, também, pela emergência do nosso ofício. Proletárias da arte, escravizadas pela cultura.


Há, antes, o espírito da revolta que questiona os dogmas da realidade, o silêncio de Deus. O mal do existencialismo é questionar a própria existência, quando os deuses são o que são porque não se pensam. Sobreviver sem mitificação pode ser um ato minimalista contra nossas inclinações demasiadamente humanas e aspirações antropocêntricas. Sísifo é maior que seu próprio destino. Sysyphus somos nós, heroínas de um Brasil trágico.

 

Morgana Poiesis, Vitória da Conquista-BA, 2022.

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