Corpus Ritualis *



“Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós”
(Fernando Pessoa)


Corpus Ritualis. Um grupo experimental que se propôs a investigar, conhecer, descobrir e não codificar os corpos que o compunham. E porque não dizer seu próprio corpo, seu corpo único, a expansão de um só corpo que se multiplicava, de múltiplos corpos que se uniam. Um grupo que respirou intensamente pelos dois anos em que existiu, efêmero pela própria natureza. Existiu durante o tempo em que desejos sem igual convergiam em uma mesma direção, compondo formas indefinidas, ritmos imprevisíveis, cheiros indecifráveis, exóticos sabores de nós mesmos. Composto por estudantes dos cursos de Psicologia, Comunicação e Enfermagem da Universidade Federal de Sergipe –UFS, o Corpus Ritualis registrou na história de nossos corpos a expressão de uma ousadia experimental, sedenta, caótica. Um grupo que não se propôs a teorizar, nem a discutir, não se tornando, portanto, objeto, nem mesmo neste trabalho. Um grupo que se desenvolveu num silêncio cuidadoso à medida que experimentava, que existia, impulsionado pelas forças intensivas que emergiam de nossos próprios corpos, que se comunicavam por linguagens sem códigos, por tato, por olhar, por tempetatura. Por tão soberana experiência, foi conclamado como ritual, cujos deuses foram destituídos do altar, e passaram a habitar os nossos corpos. Filhos da terra, não tínhamos paróquia. Fizemos do mar o nosso templo, do rio São Francisco o nosso altar, éramos Sol e Lua, éramos também fogo, e terra, e água, e ar. Como crianças que inventam uma nova brincadeira, brotamos como semente fértil, e embriagados, também embriagamos, e não satisfeitos de nós mesmos precisamos expandir mais e mais, dividir com outros corpos os sabores de tão deliciosas experiências. Do lúdico ao terapêutico. Onde a angústia vira arte, o silêncio vira música, todo movimento vira dança.
Numa passeata feita por mulheres em 8 de Março de 2006, no centro de Aracaju-SE, fui informada sobre um grupo de Teatro do Oprimido que estava em busca de atores. Em meio à passeata encontrei Aldo Melo, um dos idealizadores do grupo, que com poucas palavras me disse que eles estavam se encontrando nas terças-feiras à noite, me passando o horário e o endereço dos encontros. Na terça-feira seguinte eu estava lá, e o grupo se apresentou para mim não como um grupo de teatro convencional, nem mesmo de teatro do oprimido, mas como um grupo experimental que se dispunha a explorar os sentidos. Um grupo que não tinha pretensões de representar, de produzir espetáculos, um grupo que não queria platéia, nem público, nem aplausos. Tínhamos ali uma concepção de arte fundamentada nos trabalhos de Boal, onde somos todos artistas, protagonistas de nossa própria história, artesãos de nossas próprias vidas. Um grupo que estava aberto a novos corpos, a novos encontros, intuitivamente selecionados. E foram bons encontros os nossos...
Aglutinando as mais diversas linguagens artísticas, tínhamos o corpo como instrumento principal, regado a música, a dança e a poesia. Éramos um grupo embebido pelo calor de nossos próprios corpos, corpos que se uniam, se entrelaçavam, se estremeciam, davam choques, e, por vezes, também choravam, também gemiam. Éramos estranhos a nós mesmos, e nos desvendávamos na mais profunda e cúmplice intimidade. De simples jogos teatrais às mais genuínas cantigas e cirandas, tal como nossos índios antecessores, tal como os ancestrais de todas as nossas variadas culturas, tínhamos na roda a nossa força, o desenho de nossas composições corporais, o símbolo de nossa entrega. Na roda “onde tudo se resolve”, onde as mais belas expressões se constituem, como diz Aldo em entrevista: “a barriga de uma mulher grávida é circular... os olhos de uma pessoa apaixonada é circular...”. Tal como na capoeira, onde entrar na roda quer dizer sair no mundo, bem como nas mais tradicionais expressões de nossas forças criativas e de resistência, também no Corpus Ritualis a roda desempenhava uma função primordial:

"Na origem da capoeira existe a roda, espaço ritual e circular do qual brotam e se espalham os movimentos giratórios dos corpos que traçam no ar círculos abertos e dinâmicos. Lançados como que de improviso, os gestos parecem seguir as linhas de uma rigorosa geometria da qual hipérboles e arabescos invisíveis atravessam o espaço. Repelem e lançam ao infinito as linhas de fuga traçadas pelos antigos escravos. Na roda, o dançarino encontra-se no centro de linhas de forças que percorrem todos os lugares heterogêneos" (DUMOULIÉ, in LINS [org.], 2007, p. 5).


Se “o Corpus Ritualis é isso... é um círculo”, então podemos dizer que fazíamos da roda o nosso divã. Um divã onde não cabiam o repouso nem a inércia, onde nem sequer tínhamos a palavra como força expressiva maior. Na roda constituíamos o nosso plano de consistência, campo de compartilhamentos de subjetividades que se compunham numa só, porque ali todos nós éramos um só corpo, e arrisco-me a dizer, um só corpo sem órgãos. Tal sensação pode ser expressa pelas palavras da companheira Sílvia Anjos, ex-integrante do grupo, não por acaso o sobrenome:

"Então, quando a gente fazia aqueles trabalhos, e você conseguia olhar no olho um do outro, tocar a pele do outro, e você se sentir parte daquilo, às vezes você nem sentia que era um corpo diferente do seu, era como se fosse o seu corpo também, não existia essa separação, esse distanciamento. Então quando você quebrava isso você conseguia olhar pro outro como se fosse você mesmo, e o nível de afeto e de cuidado que eu tinha por mim eu ia ter por ele. Eu não iria olhar como um ser distante, e nunca ia ser apático pra mim aquilo, eu nunca ia fingir que ele não existe ou não está ali. Acho que é uma coisa que acontece muito hoje, às vezes por medo de se relacionar as pessoas se distanciam uma das outras e vivem em sua cúpula vazia, todos buscando coisas que no coletivo poderia ter muito mais força".

Nas palavras de Sílvia, percebemos como o Corpus Ritualis acreditava na força do coletivo, e por isto prezava pelo espírito da coletividade em suas vivências, e é claro que por tantas vezes vicioso, contraditório, falho, humano... Esta busca pela comunhão, por dissolver os territórios existentes entre um e outro, territórios muitas vezes instituídos e capturados pelo capitalismo, fortalecia o caráter ritualístico das experiências do grupo, como diz Aldo:

"Então o Corpus Ritualis eram os corpos em ritual, os corpos comungando com o cosmos, com as forças extra-sensoriais, com as forças da natureza, com os anjos, espíritos que cada um acreditasse, não havia crença comum, e sim um compartilhamento de crenças. Eu acho que na humanidade as religiões cada vez mais devem se dissolver e dar lugar à comunhão que é o princípio de toda religião. Todos nós parávamos de criar territórios, de separar as coisas e unir todos". (Aldo)

Marcados pela herança de uma forte cultura popular, característica marcante do estado de Sergipe, carregávamos em nosso imaginário e em nossos corpos uma tradição que assimilou muito da sabedoria de nossos mestres populares, de nossos mestres de rua, bem como das artes do circo, a preciosidade do riso, a possibilidade do erro e não enquanto falha, mas enquanto fenômeno. Então reunimos tudo o que sabíamos do teatro do oprimido, do circo, da capoeira, da biodança, da técnica de improvisação e contato e das artes populares:

"A semente do Corpus Ritualis está no encontro do teatro do oprimido, com a cultura popular e o circo (...) Os nossos verdadeiros mestre não nos deram diplomas, nem eles têm diplomas, mas escreveram a sua poesia, a gestualidade de suas músicas em nossos próprios corpos. Todos nós temos estes registros corporais (...) Então fui unindo uma coisa à outra, e aí teve também a força grande da capoeira angola, que despertou muito esta coisa da dança, da dança primordial, da dança africana, da dança popular e agente saiu juntando tudo o que a gente tinha, a psicologia, os trabalhos terapêuticos corporais (...) Então foi juntando tudo isso usando muito a intuição". (Aldo)


Entoávamos cantigas que reverenciavam as nossas mais genuínas formações, uma formação unívoca do ser, germe que se dissolveu dentro de mim, notas que ainda cantarolo sob o Sol, ora num tom que se finge solitário, ora com os pés descalços, sobre a terra, num trabalho de teatro que realizo com as crianças do Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD, num acampamento que existe há cerca de 4 meses na Fazenda Santa Emília – Vitória da Conquista-Ba. Inspirada no Corpus Ritualis, cantamos juntos:

A terra é nossa mãe
devemos cuidar dela
Seu solo é sagrado
é nele que plantamos
Unidos
Minha gente somos um
Minha gente somos um
Um...
Um...
Um...

A princípio nos encontrávamos uma vez por semana, encontros que duravam cerca de uma hora e meia, uma referência temporal que não se pretende ser exata. Havia também os dias em que nossos corpos não queriam atividades intensas, reclamavam cansaço, indisposição, e nos satisfazíamos com momentos de bate papo, sem que isso nos causasse qualquer sentimento de frustração, porque, a propósito, não tínhamos um programa definido, não tínhamos roteiro, não tínhamos metodologia. Não éramos forma. Éramos experimentalmente livres de qualquer comprometimento moral. Precisávamos ser éticos... Éramos expressão de nossos sinceros desejos, éramos fluxo, éramos devir. Devir que não é correspondência de relações, nem analogia, nem imitação, e nem metáfora: “Interpretar a palavra ‘como’ à maneira de uma metáfora ou propor uma analogia estrutural de relações (homem-ferro = cachorro-osso), é não compreender nada de devir” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 66, v. 4) Devir que é processo de desejo, que é rizoma, que é multiplicidade, que é molecular:

"Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos são coletividades moleculares, hecceidades1, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de ciência de hábito" (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 67, v. 4).


Éramos devires que são afetos que são devires. E como tais, estávamos embaixo ou acima dos limiares da percepção, sendo, portanto, imperceptíveis, sensoriais. Como sensações, éramos presença viva no corpo das forças da alteridade. Em nossas experiências não havia representação do mundo enquanto forma, mas sua expressão enquanto força:

" 'Percepção' e 'Sensação' referem-se a potências distintas do corpo sensível: se a percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, existência que se traduz de representações visuais, auditivas, etc, já a sensação traz para a subjetividade a presença viva do outro, presença passível de expressão, mas não de representação. Na relação com o mundo como campo de forças, novos blocos de sensações pulsam na subjetividade-corpo na medida em que esta vai sendo afetada por novos universos, enquanto que na relação com o mundo como forma, através das representações, a subjetividade se reconhece e se orienta no espaço de sua atualidade empírica" (ROLNIK, 2003, p.1).

Pelos devires de nossos corpos, compúnhamos desenhos inimagináveis, espontâneos, instáveis, autênticos. Éramos devir-corpo, devir-dança, devir-poesia, devir-música. Éramos a mais pura expressão dos devires de nós mesmos, e ao mesmo tempo, um único devir. Explorávamos, como nos diz Sílvia, as possibilidades do corpo, os movimentos que o corpo do outro pode compor no teu corpo e quais desenhos isso pode dar, e que composições isso pode gerar. Gerávamos composições que eram tão instáveis quanto imprevisíveis. Nas experiências do Corpus Ritualis, através de exercícios intensivos do sensível, tendo como fatores de afetivação o som, o canto, o toque, e dança, a poesia, vibrávamos com nossos corpos vibráteis, e nos entregávamos à vida “de corpo e língua”. O conceito de corpos vibráteis elaborado por Suely Rolnik serve-nos à compreensão de corpos que ali não atuavam em prol ou a partir de sua organicidade, nem por suas formas, mas pelas suas forças e potências, suas latitudes e longitudes:

"Chama-se latitude de um corpo os afetos de que ele é capaz segundo tal grau de potência, ou melhor, segundo os limites deste grau. A latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude, de partes extensivas sob uma relação. Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por características Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afetos. Chamamos etologia um tal estudo, e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira ética. (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 42, v. 4)"


Relacionando-nos por via de nossos corpos, permitindo o livre trânsito dos afetos, éramos tomados pelos nossos corpos vibráteis, vivenciávamos desejos, em sua generosa fartura. E se podemos nos utilizar de uma perspectiva dos corpos e do mundo a partir de suas intensidades e suas forças desejantes, podemos também compreender como desenhávamos em nossas experiências paisagens psicossociais cartografáveis, e por isso também antropofágicas. Buscávamos pontes de linguagem expressivas para as intensidades que habitavam nossos corpos. E como antropófagos, expropriávamos, devorávamos, transvalorávamos em busca de territórios existenciais, constituíamos realidade. Derramávamos de nossos corpos a sua sede, a sua fome, os seus medos, as suas dores, o seu cansaço, notas de música contidas no mais recôndito de nossas almas, segredos que não sabíamos, nos revelávamos. Ao som de tambores e batuques, éramos extensão da própria música, dos nossos corpos saltavam anjos e demônios, entidades almejando vida própria, movimentos imprecisos, loucos, rascunhos de nós mesmos, não almejávamos obra-prima. Conduzidos pela força de afecção ritual da música, compúnhamos uma sinfonia singular, capaz de um ritmo próprio, em um outro tom, o qual seríamos incapazes de prescrever. A música, em nós, fazia ressonância:

"Cumpre notar: tomamos de empréstimo o poder ritual da música Poder de reunião de subjetividades que se entrelaçam pela força de afecção da música. Poder de reunião de subjetividades que se entrelaçam pela força de ressonância musical. Nesta esfera, os corpos maquinicamente entram em ressonância pela força de afecção da música...Fenômeno ressonante nascido da relação vibratória entre-corpos" (PEIXOTO, 2007, p. 229).

E tal como no relato da experiência de Peixoto, éramos experiência de heterogênese: Experimentações sonoro-musicais-corporais-a-significantes:

"No caso da heterogênese, a ressonância é gestada pelos distintos corpos que se ligam pelos afetos nascidos dos sons: afecsons. Desta esfera acreditamos na potencia ritual da música. Potência estética transtonal. Potência que dá voz às polifônicas subjetividades: filhas da alteridade. Filhas da natureza a cantar e dançar: traçando novas linhas de desejo. Desejo nascido da música a-significante, ela mesma, emregência das interferências ressonantes entre-corpos"(PEIXOTO, 2007, p. 229).

Também no Corpus Ritualis éramos afetados pelo som (afecsons), pela força primaveril musical:

"Sons que afetam os corpos, remexendo as entranhas. Entranhas das vísceras, entranhas da mente. Estranhas sementes de sons, de fluxos, desejos sonoros. Poeira cósmico/sonora. Impregna o espaço, os corpos/freqüências, caldo de sons... Simultâneas misturas nascidas dos feixes de ondas Afetos de sons, filhos do encontro dos muitos de nós. Diáspora sonora. Experiência do caos. Constitui a ordem pela desordem. Primavera parida dos invernos, tristezas, da dor. Energia contida se amplia, se abre, explode em partículas. Combina os sons e silêncios. Complexas misturas de sonoras matérias. Oscilações psico-químico/físicas, músicas de elétrons, afecsons, nêutrons e proto-sons. Filhos dos fótons das cósmicas nuvens de tons, eles mesmos, brilhados, nascidos do espaço, do cosmos: das galáxias, dos universos, de nós Princípio/catástrofe dissolve, oscila, dispersa, se junta,de novo, pra gente nascer e brincar" (PEIXOTO, 2007, p. 211).

Através do som, e de seu poder de liberar as correntes da história e da memória, nos libertávamos do Cronos e entrávamos no Aión, o tempo sem tempo, o puro instante, o instante infinitamente dividido e fugidio da ocasião. Nos dissipávamos nas moléculas sonoras, nos perdíamos por suas linhas de fuga desvairadas, e como a música serve-se de tudo e arrasta tudo, nos desterritorializávamos:

"Da experimentação do ritornelo2 sonoro/musical a-significante com suas linhas de forças plásticas, a dissolvência identitária é estimulada pelas linhas de fuga advindas dos signos sonoros constituídos no plano de constituição do acaso. Pequenos uivos, sons desafinados misturados com sons afinados, risadas, tudo isso forma uma plano semiótico expressivo. Este plano semiótico vai se constituindo, ao acaso, sem nenhuma determinação prévia. Acidentes sonoros que, nas suas diversas expressões, vêm compor um outro plano. Plano que se individua para a formação de um só corpo musical (PEIXOTO, 2007, p.232)."

Ainda que não nos servíssemos da embriagues psicoativa, nos embriagávamos de nós mesmos, e alcançávamos o êxtase, o transe coletivo. Transitávamos por dimensões até então inacessíveis, rompíamos os limites do ego, habitávamos o inabitável, tornávamo-nos devir-dionisíaco:

"Encontramo-nos com a potência dionisíaca que dilacera o princípio de individuação, das formas personalísticas e identitárias. Dioniso – nome concebido ao êxtase, ao entusiasmo, à inspiração criadora. Dioniso é o deus dos caos, da desmesura, da catástrofe, dos fluxos viventes, da música. Dioniso- enquanto inspiração criadora- é o retorno da primavera, criando vida e disseminando alegria. A potência dionisíaca vem abolir a subjetividade egoística do indivíduo para dissolver as formas existenciais constituídas em puras e livres intensidades. Intensidades que só dizem das multiplicidades (...) Música e corpos, químico/física dos encontros misturados e desenhados pela dionisíaca embriaguez. Embriagues nascida dos sons, dos ritmos, dos timbres que destroem, abolem e despedaçam aquilo que se mantém ainda finito, ainda individual. A música dilacera o princípio da fixa unidade, da estase, que faz o tempo da vida, a necrose, a ferida a dor, a tristeza de sempre viver, sem nela mesma, sentir prazer, sem nela mesma, gozar (PEIXOTO, 2007, p. 210, 212)".

A música estava em nossos corpos de fora para dentro e de dentro para fora. Nos libertávamos pelo canto e pela dança: estéticas existenciais engendradas pelas variações intensivas afetivas. Entoávamos sons desconhecidos, impensados, desterritorializávamos também a língua, compúnhamos coro de línguas inventadas. E pelos encontros de nossos corpos dançantes, fazíamos desenhos sonoro-corporais, produzíamos ressonâncias existenciais:

"Esta ativação das forças plásticas, da energia livre, daquilo que é potencial em nós, se dá pela via dos acidentes entre corpos. Na medida que somos tocados pelas idéias sonoro/rítmico/ gestual/afetivas de outra pessoa, formas de correlação são criadas. Correlação, ela própria, nascida do toque entre corpos. Corpos que sofrem ação de outros corpos Meu corpo é tocado pelas freqüências ideativas sonoro-visuais de outro corpo que entra em ressonância- ou não- com as minhas. Toque que produz correlações/ressonâncias: o rastro/vestígio de outras subjetividades me habita como efeito do encontro. Transição de freqüências ideativas sonoro/visuais que gestam outras possibilidades de vida (PEIXOTO, 2007, p. 231)."

Ao nos tocarmos, provocávamos vibrações nos corpos uns dois outros. Fazíamos do outro extensão do nosso próprio corpo, respirávamos com o pulmão do outro, fazíamos da pele do outro a nossa própria pele e tínhamos mais braços, e mais pernas, e o cheiro do outro misturava-se com o nosso próprio cheiro, e tínhamos um gosto de todos-em-um. Do encontro entre as peles, éramos devir-outro:

"Corpos que amplificam o seu grau de potência, o seu grau de excitação pelo encontro das peles. Peles sonoras que vibram peles auditivas; peles dos dedos que deslizam em peles táteis; peles respiratórias tocadas por peles pránicas dentre o encontro de outras peles mais sutis. Películas de existência que, nas suas manifestações entre-tocadas expressam a tez singular de existências individuadas. (PEIXOTO, 2007, p. 240)."


Então fazíamos dos sentidos o nosso meio de comunicação. Pela dança, pela música, pelo olhar, pelo toque, pelo cheiro da fumaça, dos incensos, e de nossos próprios corpos, nos libertávamos de nossas silenciosas angústias, construíamos uma comunicação mais primitiva, capaz de tocar outras dimensões dos nossos corpos, por códigos que não eram lingüísticos, que não eram elaborados pelo cognitivo, mas que perpassavam em nossos corpos sentimentais, tornando-nos intensa e afetivamente cúmplices:

"Aquilo que ainda é esconderijo poderá ser luz pelo exercício processual de “se ligar” a outros mundos por outras vias expressivas. Aquilo que é esconderijo irá se manifestar quando a voz se sentir capaz de tornar pele – o que é emergente e que aparece em ato – aquilo que ainda é obscuro nos afetos e nas idéias. O tempo dos encontros produzirá a emergência daquilo tão contido, manifestando emoções pensamentos e imagens, doravante, em peles vocais" (PEIXOTO, 2007, p. 241).

A forma como experimentávamos os nossos corpos, permitindo-os circularem livremente pelo espaço exterior, pelos interstícios de nossos corpos, desobstruía os nossos fluxos sensoriais, nos permitindo o acesso aos nossos corpos vibráteis, aumentando o exercício de nossas potências criativas, que tendem a ser bloqueadas pelo modo de vida atual, quando não apropriada pela lógica de crescimento econômico:

"A obstrução do acesso às sensações, como é o caso em nossa atualidade, interrompe o processo, provoca um divórcio entre as potências de criação e de resistência, e as separa do objetivo para o qual elas são convocadas: a perseverança da vida. Surdas ao que pede a vida para continuar a se expandir, o exercício destas potências, quando mobilizado, trava seu fluxo, e no limite pode até colocá-la em risco" (ROLNIK, 2003, p. 4).

À medida que nos envolvíamos e nos desenvolvíamos, percebíamos como a nossa brincadeira ia pouco a pouco compondo os nossos corpos, e a partir daí alterando as nossas condutas afetivas, melhorando as nossas relações, dentro e fora do grupo:

"Eu sinto que não só dentro do grupo, mas melhorou minha comunicação com minha família, minha relação se tornou mais espontânea no meu trabalho, meu ambiente profissional, conversando com meus colegas (...) então desde a comunicação mais burocrática que é a comunicação acadêmica, oral ou escrita, codificada, até a comunicação mais familiar, foi tudo transformado, a forma de me relacionar com Deus, ficou mais dentro de mim". (ALDO)

"Pra mim o corpo possibilitou muito isso, e aí era engraçado, porque as relações vão se afetar, não só no grupo, você produzia este nível de afeto ali, mas isto extravasava para todas as suas relações fora, E aí era engraçado também, porque às vezes você ia convivendo com as pessoas do lado de fora, a aí você passava pela vivência, saía da vivência, e o seu olhar estava diferente, a forma de você tocar, você estava muito sensibilizado para tocar as pessoas,, comunicar com as pessoas de uma forma mais rica, mais ampliada. Com o tempo, se demorasse muito a ter um novo encontro você ia perdendo aquilo também, ia se endurecendo, eu sentia isso (SILVIA).

"Então eu comecei a me relacionar de outra forma com todos, em casa, as pessoas que estavam perto de mim, com o meu irmão"(HELEN).


Em nossos encontros semanais íamos sensibilizando os nossos corpos, bem como tomando consciência de nossa própria sensibilidade, por tantas vezes oprimida em nossas condutas diárias, o cronos cotidiano que tende a sufocá-la em seus valores. Pouco a pouco fomos descobrindo em cada um de nós potenciais até então desconhecidos, de acolhimento, de cura pelo afeto, e pelo coração, como relata Helen Aragão:

"E com esta relação aprendi a abraçar as pessoas. Fui percebendo que no grupo comecei a acolher as pessoas com que nós fazíamos os trabalhos. Então a minha participação foi muito acolhedora, descobri em mim um potencial acolhedor que antes eu desconhecia (...) Hoje eu consigo chegar aos meus amigos e dar um abraço, um beijo no rosto, falar uma coisa bonita e não mais cobranças, não mais este sistema que a gente vive de só apontar os defeitos, e sim perceber o que cada um tem de melhor, aquilo que tem de potencial" (Helen)


Na medida em que nos libertávamos de dores e angústias, percebíamos que as nossas experiências tinham pra nós mesmos um caráter bastante terapêutico. Dispostos a expandi-las, em fevereiro de 2006 fomos convidados a desenvolver nossos trabalhos na Fazenda Mãe Natureza, onde eram realizadas vivências com pessoas que apresentavam quadros emocionais abalados, que vinham sofrendo de depressão, tomando medicação controlada. Durante um ano e meio estivemos na Fazenda Mãe Natureza uma vez por semana, compartilhando com outras pessoas as nossas experiências. E após os nossos trabalhos chegavam a ser surpreendentes as declarações, os desabafos, a forma como as nossas experiências eram assimiladas por aquelas pessoas, muitas vezes carentes de um contato corporal mais carinhoso ou com os corpos de tal maneira enrijecidos, carentes de dança e de canto. Fomos auxiliando aquelas pessoas a se expressarem por outras vias além da fala, a descobrir o potencial de seus corpos, a sua força criativa e a sua espontaneidade. Com os trabalhos terapêuticos na Fazenda, o Corpus Ritualis expandiu também a sua responsabilidade, e adquiriu uma responsabilidade social. Esta transição do lúdico ao terapêutico foi marcante na história do grupo, como diz Aldo:

"Uma coisa se abriu no nosso coração, a responsabilidade que a gente tem em fazer as pessoas desenvolverem a sua criatividade, a sua espontaneidade, isso era o mais básico (...) Isso precisava de um nome (...)Precisávamos saber falar do que a gente tava fazendo, precisávamos comunicar o que a gente tava fazendo, aí surgiu um novo momento do grupo, um momento de responsabilidade social (...) Responsabilidade vem do grego que dá origem a duas palavras, espontaneidade e resposta. Então a consolidação do grupo foi uma resposta espontânea mesmo, uma necessidade social, necessidade do contexto que a gente tava, por fazer uma coisa mais profunda (...) Depois em me formei em psicologia e pude afirmar que aquela era uma forma terapêutica de se trabalhar" (Aldo)


Expandir os nossos trabalhos com grupos em níveis emocionais delicados certamente nos conferiu uma responsabilidade muito maior. Uma responsabilidade que já estava presente em nossos trabalhos, na medida em que lidávamos com os fluxos imprevisíveis de corpos em estados de êxtase, com as suas forças intensivas em movimento. Desenvolvíamos a afetividade entre aquelas pessoas, e queríamos que tais afetos fossem bons, aumentassem a nossa potência de existir. Nos momentos de transe, eclodiam as mais diversas reações emocionais, risos e prantos, momentos de descompensações e catarse:

"Quando eu entrei no Corpus Ritualis havia reações que eu achava bastante estranhas, as pessoas entravam num transe bastante profundo, se desvirtuavam mesmo da realidade, algumas precisavam de uma atenção um pouco mais focada, aí eu chegava pra conhecer a pessoa, e só um toque no ombro ela começava a chorar e ali já se resolvia, então ela falava um pouquinho sobre o que ela estava sentindo naquele momento" (Helen)

Mas ornar-se múltiplo, caótico, perder a consciência da história e memória pode ser perigoso também. A vivência dionisíaca apresenta os seus riscos. A imprevisibilidade e a intensidade das forças com as quais lidávamos exigiam de nós uma prudência tamanha, um verdadeiro senso de ética. Por isso creio que no Corpus Ritualis construímos uma ética afetiva, embora não lêssemos Espinosa, nem teorizássemos sobre isso. Ética desenhada traço a traço pela nossa coragem, pela nossa ousadia. A prudência mencionada por Deleuze e por Espinosa. O que pode um corpo? Não sabemos... É neste mesmo sentido que Suely apresenta o Manual do Cartógrafo, e seus princípios extramorais:

O critério de avaliação do cartógrafo você já conhece: é o do grau de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com o caráter de finito ilimitado que o desejo imprime na condição humana desejante e seus medos. É o do valor que se dá para cada um dos movimentos do desejo. Em outras palavras, o critério do cartógrafo é, fundamentalmente, o grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento. Seu critério tem como pressuposto seu princípio" (ROLNIK, 2006, p. 68, 69).


Porque precisávamos conservar a qualidade de nossos encontros, encontros bons, porque precisávamos conservar os níveis de afetos que aumentavam a nossa potência de agir e de existir, precisávamos ser éticos. Porque precisávamos manter limiares suportáveis de desterritorialização, explorar os nossos corpos na medida em que éramos capazes de suportar os graus, níveis e direções de seus desejos, precisávamos ser cartógrafos:

"O cartógrafo nunca esquece que há um limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade com o finito limitado, base de seu critério: um limite de tolerância, para a desorientação e a reorientação dos afetos, um “ limiar de desterritorialização”. Ele sempre avalia o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Poderíamos chamar esse seu instrumento de avaliação de “limiar de desencantamento possível”, na medida em que, afinal, trata-se aqui, de avaliar o quanto se suporta, em cada situação, o desencantamento das máscaras que estão nos constituindo, sua perda de sentido, nossa desilusão. O quanto se suporta o desencantamento, de modo a liberar os afetos recém-surgidos para investirem outras matérias de expressão e, com isso, permitir que se criem novas máscaras, novos sentidos. Ou, ao contrário, o quanto, por não se suportar este processo, ele está sendo impedido. É claro que este tipo de avaliação nada tem a ver com cálculos matemáticos, padrões ou medidas, mas com aquilo que o corpo vibrátil capta no ar: uma espécie de feeling que varia inteiramente em função da singularidade de cada situação, inclusive do limite de tolerância do próprio corpo vibrátil que está avaliada. A regra do cartógrafo então é muito simples: é só nunca esquecer de considerar esse limar. Regra de prudência. Regra de delicadeza para com a vida. Regra que agiliza mas não atenua seu princípio: essa sua regra permite discriminar os graus de perigo e de potência- que o corpo vibrátil reconhece muito bem - a reatividade das forças deixa de ser reconversível em atividade e começa a agir no sentido da pura destruição de si mesmo e/ou do outro: quando isso acontece, o cartógrafo, em nome da vida, pode e deve ser absolutamente impiedoso"(ROLNIK, 2006, p. 68, 69).


Porque queríamos ser virtuosos, queríamos nos conservar e nos expandir, queríamos perseverar a vida. E se o Corpus Ritualis foi uma tentativa de reincorporar Deus em nossas vidas, como diz Aldo, não nos cabia a definição ontológica dessa substância, nem tampouco é a preocupação deste trabalho. Tínhamos ali uma grande missão, uma longa aprendizagem, porque também não estávamos prontos. Perseguíamos a tentativa de um encontro profundo com nossa essência, ela mesma por nós desconhecida, inalcançável à nossa capacidade intelectual. A busca pela essência é prioridade de poucos...
Os planos de consistência duram o tempo de sua natureza essencial. Os desejos são livres e fugidios, desenham verdades pontuais, efêmeros sentidos. É preciso estar muito atento para identificarmos os limiares de sua sinceridade, e sermos suficientemente éticos para concebê-los na medida apenas em que se sustentam alegre e plenamente. Assim é com as nossas relações afetivas: O desejo é instável, é vivo. Só mesmo uma ética muito nobre para reconhecer que ele dura um tempo outro, um tempo que não atende aos nossos vícios, às nossas ambições, ao nosso ímpeto medroso de conferir-lhes formas e funções, de institucionalizá-los. Porque institucionalizamos relações, institucionalizamos sentimentos, institucionalizamos pessoas. E adulterando as essências, construímos instituições ocas. Instituições que se sustentam de vazio.
O Corpus Ritualis existiu somente enquanto respirou intensamente. O tempo de composição de seus desejos. Porque se se pretendia ser feito de essência, não podia se consolidar enquanto forma, enquanto nome, enquanto instituição. Na medida em que nossos corpos foram aspirando desejos que voavam em outras direções, nos dissolvemos enquanto grupo, e carregamos a unicidade em nossos corpos. Carregamos em cada um de nós registros de uma ética afetiva experimental, que não precisa ser saudosista. Este trabalho é talvez uma extensão daquela afetividade. Uma extensão perigosa, confesso. Corre o risco de ser demasiadamente ingênua e adulterar a essência do que fala. Corre o risco de cair no erro da análise e da interpretação. As palavras não alcançam o sabor que experimentamos.
Este trabalho é talvez um brinde à nossa ousadia, à nossa busca, à nossa liberdade. Pela plenitude e efemeridade do que vivenciamos. Fomos eternos enquanto existimos, e existimos enquanto fomos plenos. Existência fortuita a nossa... Foi como se um sopro de vento dissolvesse o grupo num momento leve. Será que a plenitude dura o tempo exato do bater de asas de uma borboleta alegre? Mas creio em algo de infinito nisso tudo: que ela seja ainda mais frequente do que breve.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Como criar para si um corpo sem órgãos. In Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. in Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. in Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. 1837 – Acerca do ritornelo. in Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.


DUMOULIÉ, Camille. A capoeira, arte de resistência e estética da potência. In LINS, Daniel (org.). Nietzsche/Deleuze: arte, resistência; Simpósio Internacional de Filosofia - 2004. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza-CE: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007.

PEIXOTO, Paulo de Tarso de Castro. Do esquadrinhamento dos corpos à invenção de práticas instituintes nos ambulatórios de saúde mental: três movimentos para a heterogênese. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Agosto de 2007. Disponível em: . Acessado em 1º. de julho de 2008.

ROLNIK, Suely. O ocaso da vítima; a criação se livra do cafetão e se junta com resistência. In Núcleo de Estudos da Subjetividade - Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP / Suely Rolnik. 2003. Disponível em Acessado em 10 de julho de 2008.


* Texto integrante da monografia do bacharelado em Comunicação Social-UESB, intitulada "Intersubjetividade Corporal - Aspectos filosóficos da intercorporeidade e a construção de uma ética afetiva nas experiências do Corpus Ritualis", 2008, sob desorientação de Valter Rodrigues, in memorian.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

*erf6r0ance d6 tec3ad6 desc6nf5g4rad6

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

CARTA PARA DRUMMOND