Tragédia do Tamanduá


















O segredo de uma diferença é que a sua singularidade não a torna incomum. E em um espaço-tempo de forças criativas em experimentação, onde o confronto das diferenças se pretendia inevitável, haveria de se saber o risco de uma experiência. A arte recusa os covardes,  disse poeta. No agenciamento dos encontros e na metodologia proposta para a construção do o filmeTragédia do Tamanduá, não havia certamente o desejo por consenso, de modo que tivemos a crise latente como força motriz da nossa composição. Neste sentido houve violência, e por alguns, inclusive, crueldade. Mas afora qualquer interpretação moralista a respeito, feliz a pertinência desses substantivos.
Houve os que temeram o imprevisível da experiência, os que não puderam concebê-la, os que preferiram descansar à confortável sombra da precisão técnica, os que se enganavam impotentes frente à inexistência de um roteiro pré-concebido, os que não dispuseram de consistência suficiente para o encontro necessariamente destemido com acaso, e houve, por fim, os que foram impelidos em seu ímpeto ali permitido de liberdade. Mas estavam todos lá, algumas dezenas de identidades aparentemente consolidadas (dizia-se que ainda outras presenças não vistas), e cada um com as suas próprias pernas, naquele perigoso experimento químico de corpos intensos e agitados. As portas abertas à recepção permitiam os mais diferentes modos de fuga, e não foram poucos os temperamentos que ensaiaram uma retirada. Mas a provocação da experiência, ainda sob impotentes indagações, manteve obstinados os corpos em imersão.
O fato é que, ainda que não se saiba, reconheça ou assim o compreenda, o processo experimental de criação aconteceu e garantiu extensa matéria bruta a uma das possíveis versões do seu relato. Ainda que pseudo-determinações se afirmassem sólidas, como um roteiro escrito a partir dos elementos presentes, logo em cena desconstruído, à maneira mesmo de um placebo, os afetos se manifestavam no momento mágico da criação, e por vezes apenas aí se expressavam plenamente.
Os dias passados na Fazenda Ouriçanga levantavam questões delicadas a começar pelo retorno a um fenômeno social triste e enigmático, que guarda o silêncio das feridas profundas, como se qualquer descuido ameaçasse a sua pausa. Experimentar um retorno assim era de fato bastante arriscado. Havia os presentes por uma espécie de consciência aplicada, outros por perigosa ingenuidade. Questões simbólicas atravessavam os dias ao lado de céticas provocações. Na densidade das cenas soturnas, Drummond me sussurrava ao ouvido: A vida, apenas, sem mistificação... Fez-se necessário um crença estética, absolutamente. O risco era apenas a infinitude da arte.
O trágico ainda se fazia possível, nos limites dos nossos próprios corpos. Pois ainda ali, e embora imersos, tínhamos as fronteiras e suas implicações. Não sei que espécie de cristal intocável habita esse lugar secreto outrora denominado ego e ainda hoje bastante reivindicado. É ele que torna o autor guardião da obra, ciumento por direito da concepção absoluta de sua individualidade, fruto da ética social até então experimentada. O afeto, nesse caso, torna-se um ato criminoso.
O processo era ao mesmo tempo construído e questionado, evoluindo gradativamente, com fortes solavancos e espasmos. Há os que ainda desconhecem os seus próprios arranhões. Ao passo dos duelos sagrados, se faziam tocar os minúsculos olhares, as suas palmas pequenas. E por fim o descanso merecido, privilégio apenas dos dias de trabalho, nesse caso naturalmente árduo e sedutor, donde ainda não sabemos quem somos.
A dimensão da paisagem descansava os sentidos, embora possuísse uma geografia questionável. Pois naquele espaço ainda permaneciam vivos os cárceres de um território, preservado à base de sanguinárias submissões. E já não se sabia de que lado estavam as forças adquiridas, pois já não havia o reconhecimento desses limites.


Link para o vídeo: https://vimeo.com/107339322

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