PARTIR











Quando, pela primeira vez, engendrei uma partida, eu não passava de uma adolescente, com projetos de emancipação. Vivíamos em um ambiente sob todo tipo de violências, físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais, que ora tentam me intimidar, quando mais nada me impressiona e a vergonha não é minha, ora tentam me vitimizar, quando não sou uma exceção. Em uma tarde, na janela do meu quarto de uma casa em crescente pobreza, vislumbrei a perpetuação daquela realidade, sob o nosso estado de inércia, em nome de uma tolerância inconcebível à moral familiar que nos é imposta. Foi quando me questionei sobre as nossas possibilidades de vida, vi uma luz entrando por entre as grades da janela, sonhei com o meu renascimento, tive certeza que somente a mim caberia a reinvenção de uma nova vida. Assim, dei início a uma série de partidas, sob o silêncio que me protege. Se tenho algo a dizer, é que quando se rompe com o essencial, tudo o mais será contingente. Desde então, foram diversas as armadilhas, as falsas promessas e as seduções baratas. Caí em muitas delas, nesse campo minado que é o mundo, e novamente parti e partirei sempre, para não sei onde, pois habito o templo que é meu corpo em movimento. Há quem diga que reproduzo o padrão da fuga, há quem diga muitas coisas que não me convêm. Acolho bem as minhas sombras, pois, como escreveu Clarice, nunca sabemos quais delas nos sustentam, e lhes sou profundamente grata por não me permitirem ser ofuscada pelas sombras alheias, pelas projeções de outrem sobre como acham que eu deveria ser ou me comportar. Eu parti em cada grito, em cada ameaça, em cada testa franzida, em cada torcida de nariz, em cada sinal de hostilidade, em cada palavra mal dita, em cada limite ultrapassado, em cada atitude abusiva, em cada opressão aparente ou subliminar, em cada perda de respeito, em cada falta de perspectiva. Fui embora de muitos lugares e noutros não chego a entrar, pois uma mulher desacompanhada não é bem vinda em quase todos, e não faço concessões. Tenho noção de espaços privados, públicos, individuais, coletivos, compartilhados, efêmeros, permanentes, vivo atenta a essas linhas de fronteiras, onde busco me equilibrar. Partir, esse verbo intransitivo, muitas vezes, é o único ato de dignidade que me resta, e não ousem me conter.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

*erf6r0ance d6 tec3ad6 desc6nf5g4rad6

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

CARTA PARA DRUMMOND