CARTA PARA UMA ESQUIZOFEMINISTA

 

Querida Ivana1,


Começaríamos nos redimindo por identificá-la como uma esquizofeminista, posto que todas as determinações são restritivas. Podemos partir dessa identidade para desconstruí-la, enquanto a atravessamos como um lugar de fala. Também poderíamos nos identificar dessa maneira, recordando o nosso encontro no curso de Esquizoanálise ministrado pelo memorável mestre Valter Rodrigues2, a quem somos gratas. É a partir dessa conexão que nos comunicamos, ainda que tardiamente, com você, comprometidas com o nosso encontro atual, na medida em que incorporamos os debates interseccionais de gênero aos estudos pretéritos da filosofia pós-estruturalista.

Justificada a abertura desta carta, eis o que nos motiva a escrevê-la: nossa composição interrompida pela atual pandemia mundial do COVID-19, para o debate da segunda exibição do documentário O silêncio dos Homens3, em Vitória da Conquista-BA, para onde retornamos, após uma imersão de quatro anos no estado de Goiás, em virtude do doutorado. Nosso projeto seria promover uma série de exibições do documentário para estudantes secundaristas das escolas estaduais, na cidade e região, bem como para os estudantes universitários dos três campi da UESB4. Tendo sido suspenso esse projeto, por tempo indeterminado, gostaríamos de te relatar como foi a nossa experiência com a primeira exibição do filme, na Casa Memorial Regis Pacheco.

A exibição aconteceu no mês de Janeiro, deste ano, quando os professores e alunos da UESB ainda gozavam de férias coletivas. Sendo uma atividade de extensão5, nos ocorreu que seria um bom momento para acessar outras pessoas da comunidade. Foi a primeira vez que mediamos uma roda de conversas sobre o documentário, o qual tivemos conhecimento assim que fora lançado, no ano passado, tendo notícias de sua exibição e debate no cineclube de uma pequena cidade do interior de Goiás6, a propósito, estado brasileiro que apresenta o segundo maior índice de violência contra as mulheres do país, de onde somos sobreviventes. Sentimos um alívio ao saber dessa iniciativa de homens empenhados em romper com os seus próprios silêncios. No entanto, tendo nos dedicado mais aos silêncios das mulheres, os quais nos cabem questionar, como poderíamos nos voltar para esse que seria uma espécie de nosso oposto complementar?

Pois bem, a exibição e debate sobre o filme foi uma composição feita com um também egresso da Esquizoanálise, amigo de longa data7, tendo, ainda, a presença de um outro colega dessa abordagem8. Nossa roda foi composta por cerca de 20 a 30 pessoas, entre homens e mulheres de diversas idades, raças e orientação sexuais, constituindo as condições favoráveis para uma boa escuta e diálogo, com vozes heterogêneas.

Assumindo a função de mediadoras do debate, nos dedicamos mais à escuta das reverberações do documentário, após a sua exibição. Tão logo iniciado, escutamos do nosso amigo a primeira referência às mulheres quanto ao patriarcado que nos assola: “as mulheres são machistas, também.” A acusação foi seguida de uma série de relatos quanto ao machismo das mães e outras educadoras no círculo de convívio dos rapazes, o que nos evidenciou, já no início, a culpabilização das mulheres no que tange a toda e qualquer mazela social.

Veja que, sendo o próprio documentário e o debate que o sucede uma oportunidade para revisarmos a produção e a reprodução da cultura patriarcal por cada um(a) de nós, o que, ao nosso ver, deveria passar por uma apropriação da responsabilidade que cabe a todos nesse processo, porque haveriam as mulheres de serem as únicas mencionadas na busca das possíveis causas de um efeito tão perverso? O que queremos evidenciar é que, na ocasião do debate, haveríamos de nos debatermos com a reprodução explícita daquilo que buscamos extinguir.

Dentre tantos importante relatos, de pais cuidadosos à sociedade que os condena, gostaríamos de frisar um deles, que reincide em nossos círculos interpessoais. Trata-se da violência sexual contra os meninos. Focaremos neles como vítimas, nesse momento, posto que as denúncias de violências dessa natureza contra meninas, adultas e até mesmo idosas, já são amplamente denunciadas, atualmente. Há tempos, os relatos de amigos, colegas e amantes quanto aos abusos sexuais sofridos em suas infâncias, por homens e mulheres mais velhos do que eles, e a dificuldade, quando não a impossibilidade de denúncia desses casos, como um efeito reverso do próprio paternalismo, nos leva a crer que não são raros esses casos, pela frequência com que passaram a ser confessados, nas mais diferentes ocasiões. Os homens relatam que, não bastasse serem condicionados pelos seus pais a terem suas primeiras relações sexuais com profissionais do sexo, sentem-se inibidos a se vitimizarem nessas situações, bem como naquelas dos abusos relatados, posto que não lhes caberiam assumir algum tipo de fragilidade, sobretudo nas questões referentes à sexualidade. O que temos, é uma sociedade composta por indivíduos silenciosamente violentados e, por isso, sem possibilidade viável de regeneração, nos levando a vislumbrar uma cadeia sem fim. E como haveria qualquer pessoa de se colocar em um encontro saudável com o(a) outro(a), estando, ela mesma, adoecida? Que tipo de relação será possível? Fatos como esses nos levam a pensar que não há uma violência estrita dos homens sobre as mulheres, na experiência da opressão, mas uma sobreposição das mais diversas relações de forças, diga-se, dos mais fortes sobre os mais fracos, seja dos homens heterossexuais sobre os homens e as mulheres, sobretudo (mas não apenas) homossexuais e transexuais, sejam dos adultos sobre as crianças e os idosos, incluindo das mulheres sobre os meninos. Isso nos leva a pensar que nos encontramos em um estado de selvageria absoluta, pouco evoluímos, a despeito de todos os projetos civilizatórios, eles mesmos colonizadores.

Por fim, no decorrer dos relatos, as mulheres voltaram a ser o alvo das acusações, sobretudo, as feministas. Escutamos da nossa comunicação violenta, ou da nossa falta de comunicação, em virtude do empoderamento, que estaria sendo, com relação aos homens, excludente, sendo, ainda, recomendadas a repararmos, por iniciativa própria, esse abismo supostamente construído por nós. Quando, então, uma companheira revidou de que os rapazes também poderiam colaborar com as tais pontes de linguagens reivindicadas, o que nos pareceu uma sugestão bastante apropriada.

Em seguida, diante da crítica à cultura pornográfica promovida pelo ideal masculino de objetificação do corpo feminino (SONTAG, 1987)9, comercialmente patrocinada, fomos acusadas de um feminismo puritano, o que nos levou a nos deslocarmos do lugar de escuta que assumimos, inicialmente, para o lugar de fala que nos clamava. Temos sido, por outro lado, censuradas, por mulheres e homens das mais diferentes posições sociais, quanto às manifestações dos nossos corpos, desejos e sexualidades, e pelas suas exposições à nossa própria vontade. Sofremos, portanto, uma acusação em mão dupla, enquanto nos recusamos a sermos objetos dessas exposições e enquanto nos colocamos como (in)sujeitas do processo, o que parece duplicar a nossa ofensa às pretensões e expectativas sobre nossos corpos e suas manifestações, nos vendo, novamente, em um beco sem saída. Em tempo, também temos nossas questões quanto ao limite tênue, de quando estamos reproduzindo a lógica do olhar patriarcal sobre os nossos corpos, correspondendo aos seus fetiches, ou quando estamos manifestando o nosso próprio desejo. Não somos, de maneira alguma, contra o erotismo, tampouco contra a manifestação da sensualidade dos corpos, sejam eles de quaisquer gênero, mas desconfiamos da pornografia como uma apropriação capitalista e patriarcal (SOHN, 2008)10 dessa energia que podemos considerar, até mesmo, sagrada.11.

Não poderíamos, também, deixar de responder ao que fora apontado como essencialista em nossa afirmação de uma identidade de gênero, o qual consideramos múltiplo por natureza, assumindo a perspectiva dos feminismos plurais. Depois de não menos que uma década navegando pelos mares pós-estruturalistas, pelos guetos da performance artística, dos gêneros dissidentes e das transculturalidades, atravessando todas as fronteiras encontradas, no desejo do desconhecido, de nos tornarmos mulheres diferentes dos padrões sociais que nos são impostos com ainda mais peso pelos interiores do Brasil, de onde escrevemos, não pudemos deixar de escutar as críticas decoloniais, empíricas e epistemológicas, que nos devolveram às nossas origens, de maneira impiedosa. E nos reconhecermos nelas, por mais dura que seja a nossa realidade, e por mais violenta que seja a nossa história, assumir quem somos e de onde viemos, tem sido como garimpar uma possibilidade concreta de vida, uma potência de existir. Conectar com a força que emana da nossa ancestralidade tem nos nutrido aos desafios do porvir. Ademais, as crises de identidade e pertencimento ainda nos abatem, afinal, como nordestinas, somos retirantes por natureza. No entanto, assumir uma identidade em meio aos múltiplos fragmentos, aos destroços de todas as desconstruções empreendidas, em uma país no qual ainda não fomos reconhecidas como (in)sujeitas sociais, é um pré-requisito para assumir, também, um lugar de fala, nos diálogos democráticos. Diante disso, não ousamos adentrar um debate de classe, raça ou gênero sem, antes, nos colocarmos tais como somos, mulheres cis, mestiças de pele clara, trabalhadoras e heterossexuais, apesar de tudo o que implica as nossas condições e escolhas diante delas. É a partir desse lugar que esperamos ser ouvidas e respeitadas em nossas perspectivas, que são apenas visões de mundo e jamais postulados de uma somente verdade. Esperamos, com a nossa franqueza, acessar outras perspectivas e encontrar, nessa profusão de vozes e olhares, possibilidades, por mínimas que sejam, de um convívio inevitável. A ilusão da harmonia, trazida por um dos nossos interlocutores, nos soa mais como uma inspiração musical, de alguma maneira possível em sua dimensão estética. Entre silêncios e ruídos, pode a vida se tornar uma obra de arte, tendo ela rompido com a sua própria natureza?

Por fim, os debates de gênero são como batalhas de onde saímos sempre feridas mas não mortas. Foi importante ter realizado a exibição do documentário e promovido o debate que o filme sugere. Mas não colhemos as rosas isentas dos seus espinhos e, carregando delas a mesma delicadeza, concluímos que a nossa linguagem se manifestará de forma estritamente poética, quando julgarmos pertinente. Foi por esse motivo que te convidamos a mediar os próximos debates, dadas as suas habilidades objetivas e formações adequadas. Considerando necessário e, até mesmo, urgente, a educação de gênero através de recursos didáticos como esse filme, pretendemos seguir com o projeto das exibições, assim que possível. Esperamos poder contar com a sua presença e condução dialógica.


Abraços feministas

Morgana Poiesis



Vitória da Conquista-BA, Quarentena de 2020.

1 Ivana Patrícia, psicóloga, feminista, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar sobre mulheres, gênero e feminismos, Universidade Federal da Bahia.

2 Cursos de extensão Esquizoanálise: uma intrudução e Esquizoanálise: micropolíticas do desejo, ministrados pelo psicólogo e professor Valter Rodrigues (in memoriam), pela Faculdade de Tecnologia e Ciências, em Vitória da Conquista-BA, 2008-2009.

3 Dirigido por Ivan Leite & Luiza de Castro (Brasil, 2019), esse filme é parte de um projeto que ouviu mais de 40 mil pessoas sobre questões relacionadas às masculinidades, desembocando num documentário e num livro-ferramenta baseado nesse estudo com dados públicos, por meio de um convênio com o Consórcio de Informações Sociais (CIS) da USP, contando com apoio institucional da ONU Mulheres e do projeto Eles por Elas. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE.

4 Campi de Vitória da Conquista-BA, Jequié-BA e Itapetinga-BA.

5 A atividade faz parte do projeto de extensão Performances Culturais, proposto por nós através de Coordenação de Cultura/PROEX/UESB.

6Cine COEPI – Comunidade Educacional de Pirenópolis, Goiás.

7George Neri, cineasta, produtor de eventos da Secretaria de Cultura, em Vitória da Conquista-BA.

8Marx Eduardo, psicólogo e professor da UESB.

9 “Justine (personagem de Marquês de Sade) é o estereótipo do objeto sexual (invariavelmente feminino, uma vez que a maior parte da pornografia é escrita por homens, ou a partir do ponto de vista masculino estereotipado): uma vítima perplexa cuja consciência permanece inalterada por suas experiências”. SONTAG, 1987, p. 20. (Grifo nosso).

10“O aumento da pornografia remete, no entanto, a um fenômeno mais amplo, o da comercialização do corpo sexuado.” (SOHN, 2008, p. 109).

11“Há um ser que vive no subterrâneo selvagem das naturezas das mulheres. Essa criatura faz parte da nossa natureza sensorial e, como qualquer animal completo, possui seus próprios ciclos naturais e nutritivos. (…) É esse aspecto da mulher que tem cio (…) uma espécie de fogo interior cuja chama cresce e depois abaixa, em ciclos. A partir da energia liberada nesse nível, a mulher age como lhe convém. O cio da mulher não é um estado de excitação sexual, mas um estado de intensa consciência sensorial que inclui a sexualidade, sem se limitar a ela. Muito poderia ser escrito acerca dos usos e abusos da natureza sensorial feminina e sobre como a mulher e outras pessoas atiçam o fogo à revelia dos seus ritmos naturais ou tentam extingui-lo por completo. (…) Na mulher moderna, essa manifestação recebeu pouquíssima atenção e, em muitas regiões e períodos, foi totalmente eliminada. (…) A sexualidade pode ser imaginada como um bálsamo para o espírito, sendo, portanto, sagrada” (PINKOLA, 2018).

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