A Estética do Silêncio

Susan Sontag inicia o seu ensaio A Estética do Silêncio, no livro A vontade Radical (1987), afirmando que toda época precisa reinventar o seu próprio projeto de espiritualidade, do qual a Arte teria sido a metáfora mais ativa, na modernidade. A autora identifica uma série de crises e processos de desmistificação da Arte, desde a unificação de numerosas e díspares atividades artísticas nessa denominação genérica, até a mudança do seu entendimento como expressão da consciência humana, para uma concepção pós-psicológica, em que ela torna-se um antídoto à capacidade de auto-alienação da mente, na afirmação de si própria. A partir desse novo mito, a arte deveria tender à antiarte, à eliminação do tema, objeto ou imagem, à substituição da intenção pelo acaso e à busca do silêncio, o que implicaria em um apelo tácito ou aberto à abolição da própria arte. Essa opção pelo silêncio, que teria sido feita por artistas como Rimbaud, Duchamp, Apollinaire, Harpo Marx, Stein, Burroughs, entre outros, conferiria força e autoridade ao que foi interrompido, acrescentando-lhe uma nova fonte de vitalidade e uma atitude séria, em que a obra de arte tornar-se-ia um meio para alguma coisa que só poderia ser atingida pelo abandono dela própria. O silêncio, como um estado de espírito de ultimação antitético descrito por Valery e Rilke, seria uma zona de meditação, purificação e preparação para o aprimoramento espiritual, uma ordália que findaria na conquista do direito de falar e, ainda, um tipo de libertação da postura servil do artista frente ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra. Sontag percebe essa renúncia do silêncio à sociedade como um gesto altamente social, que levaria o público a um movimento de ininteligibilidade, invisibilidade e inaudibilidade, deslocando-o, por fim, do seu estado de passividade e voyerismo, em vias de uma aprimoramento da sua experiência. Essa negação do silêncio com relação à arte e ao público, supostamente em favor da vida, se constituiria como uma afirmação ascética, nunca plenamente alcançável, tal como o teria colocado John Cage, que para satisfazer qualquer critério estabelecido de arte, situara a execução de uma peça em um palco de concerto, na sua obra 4'33''. Para Sontag, o silêncio teria figurado na arte, ora como decisão (Kleist, Lautréamont), ora como punição (Holderlin, Artaud). Segundo ela, o silêncio implicaria o seu oposto e dependeria da sua presença, sendo necessário reconhecer um meio circundante de som e linguagem para admiti-lo, bem como produzir algo dialético, em que ele, como uma espécie de programa em defesa de uma redução radical dos meios e efeitos na arte, continuaria a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso e elemento em um diálogo. Ao reconhecer na arte ruidosa do nosso tempo os apelos ao silêncio, Sontag afirma que essa retórica implica uma determinação do artista em perseguir suas atividades de forma mais errática, conforme a noção de “margem plena”, de Breton. Assim, as noções de silêncio, vazio e redução promoveriam uma experiência de arte mais imediata e sensível, mais consciente e conceitual. Além disso, a arte empobrecida (Jerzy Grotowski) e purificada pelo silêncio transcenderia o caráter seletivo da atenção e suas distorções da experiência, para a qual ela teria sido um instrumento pedagógico, anteriormente, em vias de uma capacidade de atenção em todas as coisas, uma experiência minoritária, um desejo de atingir o ilimitado, não seletivo e completo conhecimento de Deus. Sontag adverte para o esgotamento da linguagem como metáfora privilegiada para expressar o caráter mediado da criação artística e da obra de arte, sobretudo pelo peso da consciência histórica secular, concebida como a memória de todas as palavras já ditas, contra a qual a arte silenciosa constituiria uma condição visionária e a-história, através de uma contraposição do convite ao olhar feito pela arte tradicional, pelo convite ao fitar da arte silenciosa, e o caráter essencialmente compulsivo, estável, modulado e fixo desse ato. O silêncio seria a metáfora para uma visão não-interferente, apropriado a obras de arte que são indiferentes antes de serem vistas, diante das quais o expectador se aproximaria como se contemplasse uma paisagem a requerer sua ausência, de modo a eliminá-lo como o sujeito que a percebe. A essa plenitude ideal, análoga à relação estética com a natureza, aspiraria uma grande parcela da arte contemporânea, através de estratégias de brandura, redução, disindividualização e alogicidade. O indivíduo silencioso se tornaria opaco para o outro, inaugurando uma séria de possibilidades de interpretação e imputação de discurso ao seu silêncio, provocando uma espécie de vertigem espiritual, tal como no filme Persona, de Bergman. Essa opacidade, contudo, poderia ser concebida de forma mais positiva e livre de angústia, na medida em que o silêncio poderia ser equiparado ao tempo interrompido, à eternidade e à inexistência ou nova forma de pensamento. O silêncio expressaria, ainda, um projeto mítico de libertação total e profecia de uma arte radical. Sontag aponta outros usos possíveis do silêncio, para além da polaridade essencial à efetivação de todo sistema de linguagem, como atestar a renúncia ao pensamento, testemunhar sua perfeição, fornecer tempo para sua exploração ou, ainda, auxiliar o discurso a atingir a sua máxima integridade. O silêncio administrado pelo artista seria parte de um programa de terapia perceptiva e cultural, calcada mais no choque que na persuasão. A autora retoma ao pensamento de Mallarmé, segundo o qual a poesia é capaz de criar silêncio ao redor das coisas. O esvaziamento, em analogia ao silêncio, poderia ser alcançado com a redução permanente da linguagem, como o ato linguístico mais simples de nominação das coisas, seja sob o humanismo de Rilke, ou a impessoalidade de Roussel, Andy Warhol e Robbe-Grillet, em vias de um aguçamento dos sentidos e autêntico estado de consciência, em contraposição aos efeitos tradicionais da obra de arte, de despertar, manipular e satisfazer as expectativas emocionais do expectador, o que nos levaria à arte do inventário, do catálogo, das superfícies e do acaso. Essa busca pelo mutismo não seria, contudo, uma rejeição absoluta à linguagem mas, antes, uma altíssima estima ao seu poder, força e perigo colocado a uma consciência livre. Outra estratégia apontada por Sontag para uma estética do silêncio seria a literalidade proposta por Wittgenstein, em sua tese “o significado é o uso”, e aplicada pelas narrativas de Kafka e Beckett, cujos efeitos de ansiedade, angústia, isolamento, lascívia e alívio se aproximariam daqueles provocados pela paisagem imaginária dos surrealistas, em oposição à noção de belo, na obra de arte tradicional. Sontag sugere que, se cada obra de arte nos dá uma forma, paradigma ou modelo de conhecimento de alguma coisa, tal epistemologia poderia propor uma derrubada das regras previamente consagradas, lançando o seu próprio conjunto de limites. Por fim, a autora identifica dois estilos de silêncio nos artistas contemporâneos: o forte, caracterizado em função da instável antítese entre o vazio e o pleno; e o brando, marcado pela preocupação com os modos de correção e padrões de compostura. De todo modo, o silêncio seria viável à arte e ao conhecimento modernos, somente se empregado com uma ironia sistemática, cujos recursos poderiam ser ponderados a partir de Sócrates, em que ela é tomada como um método complexo de busca e sustentação de uma verdade pessoal, ou de Nietzsche, em que sua difusão implicaria na decadência dos poderes de uma determinada cultura.

 

Resumo, por Morgana Poiesis, 2015.

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