CARTA AO PAI (sem comentários)


Esta não é uma carta de amor nem de saudade, mas de lucidez e libertação.

Começaria dizendo que me lembro de tudo: do seu egoísmo, das suas castrações e dos seus abusos.

Lembro das histórias que escutava quando criança, dentre elas, a que você teria agredido a nossa mãe grávida de mim, na beira de um rio, sendo essa, talvez, minha primeira memória inconsciente da violência.

Lembro dos seus beliscões que me deixavam marcas roxas pelos braços, durante a infância que me foi roubada com os abusos sexuais protagonizados por você.

Lembro das igrejas que eu era obrigada a frequentar, apanhando em nome de Deus, ora por parte da nossa mãe, ao perceber que eu realmente não prestava atenção na missa, ora por sua parte, ao não ir àquela mesma missa que você não frequentava, provavelmente com vergonha dos próprios pecados.

Lembro dos finais de semana em que você voltava bêbado para casa e violentava a nossa mãe.

Lembro de quando você espancava o nosso irmão, e do ciúmes que você tinha dele com a própria mãe, o mesmo que você teve de mim mais tarde, projetando sobre nós as perversões de sua mente doentia.

Lembro de quando você passou a conviver conosco diariamente, e do mal estar que eu sentia ao ouvir o motor do carro anunciando a sua chegada.

Lembro de quando você ordenava a nossa pequena irmã a te fazer massagens e a te colocar para dormir, sabendo-se lá o que você não fazia com ela também.

Lembro de ter tido o meu primeiro orgasmo em suas mãos, durante os abusos que se estenderam até a adolescência.

Lembro que foi quando você começou a me bater, ao perceber que eu saia do seu domínio.

Lembro das torturas psicológicas, das ameaças de morte, dos sacrifícios dos gatos, do sangue pela casa, das marcas nas portas, dos cacos pelo chão recolhidos por outrem.

Lembro de quando você pediu emprestado sem nunca devolver os salários do meu primeiro emprego, aos dezesseis anos, sabotando a minha alforria.

Lembro de como você nos privava da vida, sob os argumentos de sua falsa moral, mantendo-nos em cárcere privado, de onde consegui sair viva, aos dezoito anos.

Lembro do seu discurso muito bem fundamentado sobre o pátrio poder, que lhe respaldaria juridicamente todo tipo de autoritarismo.

Lembro de como você coagia a nossa mãe a pedir demissão do emprego, cuja resistência nos preservou da miséria e garantiu a nossa educação superior.

Lembro de termos saído de casa sem nada querer levar, apenas o direito à vida e à paz que você nos tirava, e de termos carregado, ainda, a culpa de uma segregação familiar.

Lembro das vezes em que, já fugida e liberta do que deveria ter sido um lar, você aparecia de surpresa, como um fantasma a nos perseguir, mendigando o nosso afeto, como se fosse uma vítima sem razão do nosso abandono, sem nunca ter tido coragem de admitir tudo o que fez.

Lembro quando, sob a farsa de um suposto perdão, você furtou da nossa mãe o único patrimônio que ela herdou do casamento e seus adultérios, como um tiro de misericórdia.

Lembro do segredo de um aborto que te contei e que você expôs, traindo mais uma vez a minha confiança.

Mas não venho aqui para te denunciar nem te punir, tampouco para te absolver de um julgamento que não me cabe, acredito que a vida já tenha lhe ensinado as lições necessárias, assim como a mim, durante esses vinte anos de ausência.

Venho te agradecer pelo mal que você me fez, tornando-me essa mulher tão forte e livre, como nasci para ser, e que você jamais suportaria que eu tivesse sido como filha.

Pode ser que você, finalmente, consiga me matar, na tentativa de selar o silêncio fatal que me fora imposto por muito tempo, e que os outros familiares ainda insistem em manter, lhe sendo favorável, mas agora é tarde.

Pode ser, ainda, que você não suporte as minhas lembranças e insinue outro tipo de ameaça, como um chantagista que sempre foi.

Saiba que não tenho medo da vida nem da morte, e se te escrevo esta carta, é para torná-las menos pesadas para você e para mim.

E não é apenas por nós dois que o faço, mas, sobretudo, para quebrar a corrente dessa maldição que paira sobre as novas gerações que vejo nascendo e crescendo inocentes, à sombra das flores do mal.

Não clamo piedade por você nem por mim, graças às Deusas não sou cristã.

Entrego, contudo, ao Universo, essas palavras de pura sinceridade, sabendo que a força da Natureza é tão sábia quanto implacável, sendo, portanto, mais efetiva que a (in)Justiça dos Homens.


Com memórias,

m. (e as outras como eu)

Outono de 2021



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