DE UMA POLÍTICA DOS AFETOS A UM ESTADO LIVRE

 
A questão ético-política em Espinosa atravessa concepções de afeto e de Estado, tendo em vista a liberdade humana nas relações sociais. Em seu livro Ética, o filósofo holandês elabora conceitos de Deus, da natureza, da origem da alma e das afecções, bem como de suas forças, donde a servidão humana, e por fim, da potência da inteligência ou da liberdade, fundamentada nos desígnios da Razão.
Propondo uma compreensão de nossos afetos a partir não apenas dos seus efeitos, mas também de suas causas e essências, Espinosa propõe gêneros sucessivos de conhecimento da alma, a partir dos quais alcançaríamos o governo de nossas emoções, a liberdade humana, fundamentais para a constituição de um Estado livre. Os conceitos esboçados na Ética são empregados por Espinosa em seu Tratado Político, texto interrompido em virtude do fenecimento do filósofo. Trata-se de um esboço sobre os princípios fundamentais de alguns gêneros de Estado, transitando por conceitos pertinentes ao campo da política, como cidadania, poder público, democracia, entre outros. Numa busca pelo conhecimento da alma, donde advém o seu melhor usufruto, tal como nos prazeres experimentados pelos sentidos, Espinosa define o Estado como pensamento único de uma determinada sociedade, união das almas de um determinado povo, cujo fim primordial seria salvaguardar o bem estar dos cidadãos, indivíduos que gozam dos privilégios promovidos pela cidade, como poder da comunidade, em virtude do direito civil. A raridade do texto de Espinosa é determinada, sobretudo, pela sua preocupação com a liberdade humana e, por isso, ele adverte que as suas concepções de Estado apenas são possíveis se instituídas por uma população verdadeiramente livre. A liberdade, aquela alcançada pelo poder da Razão e responsável por colocar a necessidade da ação, é um conceito fundamental na obra do filósofo.
Ao tratar dos princípios fundamentais de um Estado, Espinosa utiliza-se de um discurso universal, uma vez que fundamentado na essência da natureza humana, que para ele é a mesma para todos e comum a todos, sendo, por sua vez, determinada pelo esforço natural dos seres humanos em prol da sua conservação. Essa seria a busca comum dos seres humanos, sua virtude primordial. A partir das inclinações da alma como propriedades da natureza humana, tem-se o direito natural de cada indivíduo, em virtude do qual age o ser humano, quer sábio ou insensato, e no qual cada um é senhor de si próprio.
“Por direito natural, portanto, entendo as próprias leis ou regras da Natureza segundo as quais tudo acontece, isto é, o próprio poder da Natureza. Por conseguinte, o direito natural da Natureza inteira, consequentemente de cada indivíduo, estende-se até onde vai a sua capacidade, e portanto tudo o que faz um homem, seguindo as leis da sua própria natureza, fá-lo em virtude de um direito natural soberano, e tem sobre a Natureza tanto direito quanto poder. (...) Quer seja conduzido pela Razão ou apenas pelo desejo, o homem, efetivamente, nada faz que não seja conforme com as leis ou as regras na Natureza, isto é, em virtude do direito natural.”
Espinosa concorda com os escolásticos no que se refere à concepção do ser humano como animal sociável. Assim, a união das forças dos indivíduos aumentaria os seus direitos sobre a Natureza, o que justificaria a conveniência dos seres humanos uns aos outros, e à própria constituição do Estado e do poder público, cujo corpo e alma possuiriam um direito que teria como medida e definição única o próprio poder. O desejo pela paz, concebida apenas quando não por efeito de inércia ou servidão, bem como o medo comum da solidão, seria a Razão pela qual os indivíduos, em sua maioria, concordariam com o Estado como estatuto civil da constituição social, tendo-o como um desejo natural que o fortalece. Nele prevaleceriam as leis da natureza humana.
“Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas forças, terão mais poder conjuntamente e, consequentemente, um direito superior sobre a Natureza que cada uma delas não possui sozinha e, quanto mais numerosos forem os homens que tenham posto suas forças em comum, mais direito terão eles todos. (…) Acrescentamos que sem mútua cooperação os homens nunca poderão viver bem e cultivar a sua alma. (…) Efetivamente, quanto maior for o número dos que, reunindo-se, tenham formado um corpo, tanto mais os direitos usufruirão, também, em comum.”
Em sua filosofia política, Espinosa esboça concepções de Estados monárquicos, aristocráticos, teocráticos e democráticos, sendo que, para ele, apenas nesse último existe um poder absoluto, da mesma maneira que apenas aí, onde o poder público compete a todos os cidadãos, a questão do Estado não é a segurança, mas a liberdade. Nesse sentido, Espinosa não busca a forma política mais justa, e sim, a mais livre, retomando à perspectiva filosófica da democracia já apontada por Aristóteles, para o qual a cidade democrática não se define pela igualdade, mas pela liberdade, e onde os seremos humanos são tidos como iguais para participar do poder porque são livres. Ambos os filósofos se referem à proporcionalidade que se estabelece entre o poder da potência soberana e o poder das potências individuais. Para Espinosa, a cidade é tanto mais livre quanto mais a potência soberana for incomensurável à potência de seus cidadãos, quanto mais for impossível que esses se identifiquem com aqueles, de modo que o poder, sendo de todos, não pode ser de ninguém. Para ele, apenas na cidade livre pode haver igualdade política, e não somente porque todos os cidadãos têm igual participação no poder, nas decisões e nas execuções, mas porque a transcendência do poder não admite o risco da identificação, ao mesmo tempo em que depende da potência do poder coletivo, com os seus conflitos e diferenças: “(…) así se gobernarán los hombres de tal manera que aun pensando cosas diversas y enteramente contrarias, vivan, sin embargo, en armonía.”
A liberdade, como virtude do ser humano, e estendida em seu direito natural ao direito civil, onde passa a ser proporcionada dentro de um Estado que a tenha como característica essencial, deveria permitir aos cidadãos o direito tanto de pensar o que quiser, quanto de dizer o que se pensa. A liberdade de pensamento é colocada por Espinosa como necessária para a promoção das ciências e das artes. Quanto menos se concede esta liberdade, mais o Estado civil estaria inclinado à violência política: “(…) Por lo tanto, cuanto menos se concede a los hombres la libertad de pensar, más se les aparta de su natural estado, y por consecuencia, más violentamente se reina.”
Espinosa atenta, ainda, para o fato de que, quanto mais oprimidas são tais liberdades, a de pensar e a de agir, mais os seres humanos se obstinam e rebelam. A obediência dos cidadãos dentro de um Estado livre, justificar-se-ia apenas até onde ele lhe proporcionasse as devidas condições para o exercício pleno de sua natureza, cujo fim é a sua conservação, e em prol da qual a Razão seria utilizada. As inconveniências relativas a esse tipo de liberdade seriam possivelmente resolvidas dentre de um Estado que a tenha como fim. É em nome dessa liberdade, ainda, que tanto os cidadãos quanto os detentores do poder soberano, bem como os conselheiros do Estado, poderiam ser mais sensatos do que fiéis, de modo que as suas promessas seriam absolvidas desde que a utilidade de suas ações já não se aplicassem ao novo contexto social, e desde que amparados no bom uso da Razão. É numa relação de força imanente, onde tudo se compõe ou decompõe, do ponto de vista dos corpos que a constituem, que se podeia falar em ética. É neste ponto que ela se distingue da moral, sendo que a primeira já nasce em movimento, no exercício da potência dos corpos, quando na dissolução do poder. A questão ético-política em Espinosa, ultrapassa, portanto, a determinação absoluta dos preceitos morais.
A concepção ética de Espinosa parte da compreensão de que tudo na natureza participa de uma ordem comum de encontros que, por sua vez, podem ser bons ou maus. Para o filósofo, os maus encontros são aqueles que decompõem parcial ou totalmente as relações características que constituem um determinado corpo, diminuindo a sua potência de agir e de existir. Os encontros bons, por sua vez, são aqueles que compõem as suas relações características, aumentando a sua potência de agir e de existir, promovendo os afetos de alegria, horizonte para o qual apontaria uma conduta ética, em vias da liberdade. Espinosa afirma que, para o exercício do poder, os maus encontros são necessários. Para a governabilidade e a hierarquização, para sujeitar aquele que se deseja ter sob domínio, é preciso inspirar nele paixões tristes. O Estado se sustentaria, nesse sentido, pela subordinação de indivíduos impotentes. Partindo das propriedades naturais do ser humano, Espinosa identifica no temor (o medo na medida em que o homem é por ele disposto a evitar um mal que julga futuro por um mal menor) e na esperança (alegria instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada, do resultado da qual duvidamos numa certa medida) as paixões que tornam os seres humanos submissos, sendo portanto fundamentais para a constituição da cidade enquanto corpo inteiro do Estado Civil, onde os cidadãos compartilham dos mesmos temores e esperanças, dentre as quais, aquela a todos permitida de atingir as maiores honras, devido ao amor comum pela glória (alegria acompanhada da ideia de alguma ação nossa que imaginamos que os outros louvam). Para ele, aqueles que não têm nem temor e nem esperança não dependem senão de si próprios e são inimigos do Estado, aos quais há o direito de opor uma sujeição. É neste sentido que, para Espinosa, nenhum poder soberano é absoluto (senão numa democracia, que tem um poder numérico), a ponto de não ser objetado em suas ações. Da mesma maneira, em nenhum tipo de Estado seria possível ou necessário que os cidadãos concedessem ao poder soberano todos os seus direitos, de modo que cada cidadão seria responsável por reservar para si boa parte do seu direito natural, o que não dependeria do direito outro, senão de si mesmo.
Para Espinosa, apenas no Estado existe noções de pecado, justiça e obediência. Da mesma maneira, no Estado civil, o direito natural pelo qual cada um é juiz de si mesmo desaparece, bem como a livre interpretação das leis e dos julgamentos. Espinosa lamenta a utilização de leis que reduzem o Estado a uma situação angustiante de não consentir seres humanos livres. Para ele, o conhecimento profundo dos afetos cujos conceitos são precisamente elaborados na Ética, através de gêneros que alcançam os seus efeitos, causas e essências, seria a condição necessária para a constituição de um Estado livre A conduta ética normatizada, baseada nos referenciais da Lei, que concede ao indivíduo uma liberdade assistida, com o intuito de não ameaçar a constituição ou a ordem social em que ele vive, teria sido historicamente conferida ao Estado, que institui uma codificação moral aos seus membros, a partir relações de obediência ou transgressão. Este tipo de regulação, ou dominação política, provocaria um assujeitamento sutil nos indivíduos em sociedade, uma espécie de servidão moral necessária às relações de poder já constituídas. Um conjunto de singularidades livres, no entanto, não se deixaria reduzir a relações contratuais que buscam silenciar os conflitos sociais, quando não extrair mais valia. A partir da multiplicidade de singularidades que compõe a sociedade é que se poderia pensar numa concepção de cidadania libertadora e autônoma.
Em ambos os seus tratados (Tratado Político e Tratado Teológico Político), Espinosa adverte para a condição teórica de sua concepção política. Embora elabore princípios para um Estado livre, ele afirma que os filósofos são os menos próprios para governá-lo, e que, dentre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria mais se difere da prática. A crítica à condição teórica dos filósofos é apresentada junto à crítica aos políticos enquanto seres mais hábeis do que prudentes, e cuja experiência mostra, “estão mais ocupados em preparar armadilhas aos homens do que em dirigi-los pelo melhor, posto que há sempre vícios enquanto houver humanidade.”
 
Morgana Poiesis, 2010.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

*erf6r0ance d6 tec3ad6 desc6nf5g4rad6

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

CARTA PARA DRUMMOND